23/02/2008
Ano 11 - Número 569


Sheila Sacks
ARQUIVO

 

Sheila Sacks



ONDE ‘HULK 2’ E ‘TROPA DE ELITE’ SE ENCONTRAM

 

 

Em novembro de 2007 uma equipe de Hollywood aportou em uma favela carioca, no bairro do Catete, para filmar cenas do segundo filme da festejada e milionária série “The Incredible Hulk”, que conta com um orçamento de 125 milhões de dólares. O astro principal, Edward Norton, e os vilões no filme, os atores William Hurt e Tim Roth, permaneceram dez dias filmando no local, sob o comando do diretor francês Louis Leterrier (Cão de Briga e Carga Explosiva). Na trama – criação de Zak Penn, de X-Men 2 e 3 - o cientista David Banner (Norton) busca a cura, no Brasil, para a sua indesejada mutação que o transforma em uma gigantesca criatura de força descomunal. Com lançamento oficial marcado para 13 de junho, aficionados de HQs de todo o planeta já se preparam para “curtir” as cenas empolgantes em que Bruce Banner foge de seus perseguidores pelas estreitas vielas e becos da favela. Hulk, o colosso musculoso de corpo verde e cara de zangado, vai aparecer nas telas pulando por cima dos telhados dos barracos, enquanto os moradores, amedrontados, se atropelam procurando abrigo.

É fato que a escolha de uma favela carioca como cenário eletrizante de cenas de ação deste novo blockbuster internacional se deu em razão da “fama” negativa que acompanha esses locais, há algumas décadas. Mas, contrariando a expectativa, a equipe da produção do filme se surpreendeu, positivamente, com a segurança e tranqüilidade encontradas na favela. Além, é claro, do natural entusiasmo e colaboração de seus moradores que encantaram os profissionais estrangeiros. Essa metamorfose se deu porque há sete anos a favela Tavares Bastos, que era controlada por traficantes, começou a mudar, com a instalação de um batalhão da polícia e obras de melhoria. Hoje ela serve de locação para a maioria de documentários e filmes internacionais e nacionais (como no caso do controverso filme brasileiro “Tropa de Elite”, dirigido por José Padilha, que conquistou o troféu “Urso de Ouro” de melhor filme do Festival de Berlim de 2008), e se apresenta como um exemplo de favela pacificada e integrada ao bairro.

E tem mais: o prestigiado jornal britânico “The Guardian”, em seu suplemento de turismo, já indicou a pousada “The Maze Inn” (O Labirinto), situada nesta favela, como uma opção interessante para os visitantes estrangeiros que queiram desfrutar de uma visão privilegiada da Baía da Guanabara e do Pão de Açúcar. Funcionando desde 2005, o pequeno hotel é dirigido por um inglês que vive no Brasil há 25 anos.

PAC

Alguns meses antes da presença pouco divulgada do super-herói na favela, o governo brasileiro iniciou um amplo projeto de obras em que as favelas também foram incluídas. Batizado com o nome de “Programa de Aceleração do Crescimento – PAC”, ele contemplava todas as regiões do país com investimentos no valor total de 500 bilhões de reais. A pauta abrangente somava obras de construção, reforma e ampliação de moradias, estradas, ferrovias, gasodutos, usinas, portos e aeroportos, visando à melhoria das condições de vida do cidadão brasileiro e a crescente demanda do país por uma infra-estrutura de serviços mais moderna e eficaz.

No Rio de Janeiro, o destaque do programa coube, naturalmente, às obras de urbanização e saneamento das favelas, que, após meses de estudos e cálculos, devem ser iniciadas em março. Por conta disso, a engenharia pública voltada para as camadas mais pobres da população virou estrela na mídia nacional. A confirmação de investimentos da ordem de R$ 910 milhões para as obras de infra-estrutura das favelas de Manguinhos, Rocinha e Complexo do Alemão (conhecido como a Faixa de Gaza carioca), onde vivem 245 mil pessoas, abriu espaço para a chamada “construção civil com responsabilidade social” ser apresentada ao grande público.

As metas deste modelo de engenharia mais consciente, direcionada para a Inclusão e a Justiça Social, é um fator positivo a ser realçado no PAC. Segundo dados do Governo Federal serão investidos na área de urbanização de favelas, até 2010, em todo o país, em torno de 40 bilhões de reais. Nas três favelas cariocas, uma espécie de vitrine do programa, serão erguidas novas moradias e implantados centros culturais e esportivos, piscinas, áreas de lazer, creches, escolas técnicas, postos de saúde, bibliotecas e sistemas de abastecimento de água, esgoto e iluminação pública. Para a integração com o transporte regular serão construídos teleféricos e planos inclinados, já que as favelas cariocas situam-se basicamente em morros, muitos deles de difícil acesso.

DESAFIO

Mudar uma realidade negativa que estigmatiza milhares de pessoas pode se configurar em uma bela missão para a engenharia brasileira neste início de século. Os projetos arquitetônicos que estão sendo desenvolvidos para atender as favelas e seus moradores - uma nova clientela ainda pouco conhecida da engenharia nacional - se configuram como um saudável desafio para os nossos profissionais. É bem verdade que os engenheiros e arquitetos que trabalham no Serviço Público estão acostumados a acompanhar projetos dirigidos às comunidades em geral, como a construção de escolas públicas, hospitais, delegacias, penitenciárias, fóruns, estádios, teatros etc. Mas, especificamente no PAC das favelas, o enfoque é diferente, porque estes núcleos habitacionais nunca foram o centro de uma política abrangente de ocupação social que incluísse a engenharia como ponta de lança de uma estratégia governamental.

A complexidade da missão fez com que os profissionais envolvidos com a tarefa se deslocassem até a cidade de Medellín, na Colômbia, para ver in loco as alternativas utilizadas nesse país no tocante à urbanização dessas comunidades pobres, que em comum com as nossas favelas têm um referencial de peso: a cultura do narcotráfico. Semelhante ao Rio, Medellín tem mais de 1 milhão de pessoas que vivem em favelas e de acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 70% das pessoas que moram nas favelas cariocas não querem se mudar.

Segundo o site oficial do Governo do Estado do Rio, as obras de urbanização das favelas começam na segunda quinzena de março e vão durar três anos. Uma das iniciativas para engajar os moradores na empreitada foi abrir vagas de trabalho dentro das próprias comunidades (a previsão é de 20 mil empregos diretos) e contatar as diversas associações e movimentos sociais existentes nas favelas, para ouvir e entender as suas reivindicações. Porém, nas margens de todo o amplo programa de engenharia que será implementado, uma dúvida persiste: Como irão se comportar os grupos ligados ao narcotráfico que têm uma atuação subterrânea, mas nem por isso menos atuante, no cotidiano dessas comunidades?

PACTO

Em Medellín, o programa de urbanização incluiu acordos de paz com as milícias armadas e pactos de convivência com jovens cooptados pelo narcotráfico, que foram desmobilizados, paulatinamente. Esse processo se iniciou há quase 15 anos, quando o índice de homicídios assustava a sociedade colombiana. Aqui, na cidade do Rio, a violência, além de gerar um clima de contínua insegurança, tem mexido com os bolsos dos moradores do asfalto. Tanto nas zonas sul ou norte, os apartamentos vizinhos às favelas, muitas deles de alto luxo, estão se desvalorizando. Em contrapartida, depois da confirmação das obras do PAC, as moradias nas favelas já triplicaram de preço. Um quebra-cabeça para as autoridades estaduais que procuram criar, na turma que reside nas chamadas áreas nobres e que pagam altos impostos, uma disposição de boa vontade em relação ao projeto de urbanização das favelas. Por sua vez, a geografia do Rio, privilegiada em belezas naturais, tornou-se, com o passar dos anos, um algoz insensível, cercando os bairros de trincheiras invisíveis e tornando os seus moradores reféns de sua topografia. As favelas abraçam a cidade com o peso e a força de um amigo urso, sem muita lógica, mas com poder suficiente para sufocá-la.

Consulta feita pelo jornal “O DIA OnLine” aos internautas cariocas, às vésperas de 2008, revelou que 31,4% dos 3.500 que responderam à enquete não permaneceriam na cidade durante as festividades de fim de ano, principalmente devido ao fator da violência. Sabendo-se que a orla de Copacabana é conhecida internacionalmente pelo grandioso espetáculo de luzes e som que oferece aos milhares de turistas que lotam suas areias, torna-se desalentador esse índice de fuga dos cariocas. Outra pesquisa, desta vez levada a efeito pelo site “Quero Notícia”, tem estimulado os moradores a eleger as “Sete Pragas do Rio”. Mais de 33 mil internautas já se manifestaram, apontando o tráfico de drogas e a favelização das encostas como duas das principais mazelas da cidade.

É fato que, várias vezes durante o ano de 2007, o governador do Rio, Sérgio Cabral, mostrou-se incisivo quanto a sua determinação de seguir adiante neste projeto de engenharia de inclusão social, com o objetivo de pacificar, ordenar, interagir e proporcionar uma real cidadania a esse universo de pessoas que muitos ainda teimam em ignorar: “O Rio de Janeiro tem 6 milhões de habitantes e 1,4 milhão morando em favelas. Estamos em contagem regressiva para as obras. Ocuparemos as favelas com ruas, avenidas, bibliotecas e escolas”. Decreto publicado no Diário Oficial do Estado já considerou de Utilidade Pública todas as obras do PAC nas favelas.

APOIO

No ano passado, 15 dias depois da passagem de Hulk por terras cariocas, o presidente Lula subiu o morro do Pavão-Pavãozinho, também na zona sul do Rio, para dar o pontapé inicial nas obras do PAC naquela favela. O projeto para a ampliação da via de acesso ao local foi interrompido em 2002 e o presidente garantiu 35 milhões de reais para esta obra e também para a implantação de sistemas de água e esgoto. A legalização das moradias foi outro ponto importante assinalado pelo presidente, que se tornou o primeiro mandatário do país a visitar uma favela do Rio. Em discurso, Lula foi enfático: “Um cidadão que mora apinhado em favelas, com família de oito ou nove, em um quarto de três por três, onde ali ele come, ele defeca, ele dorme, é o mundo cão levado às últimas conseqüências. E mesmo sendo habitadas por gente honesta, essas comunidades têm sido reprodutoras de mais violência.”

Essas ações, ainda que entendidas por muitos como iniciativas de caráter populista, já estão ganhando o apoio da sociedade em geral e a confiança das comunidades a serem beneficiadas. O Fundo de Populações das Nações Unidas (Unfpa), em relatório publicado em julho de 2007, faz um doloroso e sombrio prognóstico: em 2030, com a população urbana dobrada, o mundo será um planeta de favelas. No Brasil, onde 84% da população se concentra em centros urbanos, seria louvável que a grande mídia não se descuidasse do tema e continuasse a mirar os seus holofotes no trabalho a ser desenvolvido pela engenharia pública brasileira, a quem caberá, nos próximos anos, repensar, redesenhar e construir as novas configurações das cidades. Segundo o conceituado urbanista Sérgio Magalhães (antigo secretário de Habitação do Rio), se somássemos as populações das cidades do Rio e de São Paulo que hoje vivem em favelas e demais comunidades carentes, já teríamos a 3ª maior cidade do país, com quase 5 milhões de habitantes.

COCAÍNA

A cidade do Rio de Janeiro tem 752 favelas e estudos apontam que em 300 delas existe um forte tráfico de cocaína. Na Rocinha, a segunda maior favela da América do Sul, com 120 mil habitantes (a primeira é Petare, em Caracas, na Venezuela, com 1 milhão de moradores), o narcotráfico movimenta 10 milhões de reais por semana. Em contrapartida, a região tem o mais alto índice de tuberculose do estado. Já o Complexo do Alemão, onde vivem 80 mil pessoas, o tráfico de armas já é um parceiro comercial lucrativo das drogas. Dados de organizações internacionais dão conta de que a venda de armamentos contrabandeados do Paraguai rende 88 milhões de reais por ano, somente no Rio.

Muitos se utilizam dessas estatísticas de contravenção e criminalidade registradas nas favelas para sustentar a argumentação da impossibilidade de mudar a cultura social do tráfico nessas comunidades, vincada e sedimentada ao longo de mais de três décadas. Mas, nunca é demais lembrar que o Brasil tem 7,8 mil quilômetros de fronteiras pouco guarnecidas e é vizinho dos três maiores produtores de cocaína do mundo (Colômbia, Peru e Bolívia) e do maior plantador de maconha do continente (Paraguai). Em termos globais, o narcotráfico internacional movimenta 500 bilhões de dólares anuais, mais que o comércio do petróleo e só perdendo para o tráfico de armamento. Logo, demonizar as favelas como incontroláveis redutos de tráfico e negócios ilegais da cidade é ignorar a abrangência e o poderio de um bilionário comércio transnacional, que funciona e age como um governo paralelo, insubmisso às nações civilizadas, e com regras próprias.

Aliás, o filme “Tropa de Elite” (The Elite Squad, em inglês) aborda o tráfico de drogas e a corrupção policial no Rio de Janeiro, sendo baseado no livro do mesmo nome escrito por três homens que conhecem o assunto a fundo: dois policiais (Rodrigo Pimentel e André Batista) do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio - o Bope, que atua nas favelas, e o sociólogo Luiz Eduardo Soares, que foi secretário de Segurança do estado. À parte as interpretações depreciativas acerca da mensagem do filme (um fenômeno de bilheteria e pirataria que já foi visto nas telonas e nos DVDs por mais de 13 milhões de brasileiros), avaliada por militantes de direitos humanos como violenta e extremista, a película tem o mérito de mostrar a desordem moral e social que impera neste universo paralelo, tão perto e ao mesmo tempo tão distante do morador do asfalto.

MISSÃO

A grande mídia brasileira tem mais uma instigante tarefa pela frente: acompanhar e cobrar o desdobrar das obras do PAC nas favelas, alistando-se nessa missão de resgate da cidadania de uma ampla parcela de nossa sociedade, lado a lado com os arquitetos, engenheiros e operários que estarão engajados nesse trabalho. Revivendo o sonho da construção de Brasília, nos anos 60, quando a engenharia pública nacional mostrou ao mundo a sua capacidade e originalidade ao erguer uma capital moderna e funcional no meio do nada, o PAC das favelas surge, neste século 21, para consolidar os novos rumos da engenharia no Brasil. Transformar as favelas em bairros não é uma idéia nova e alguns melhoramentos já foram realizados pela Prefeitura. A inovação do PAC é a onda de conscientização que já perpassa os vários setores da sociedade, que vêm respondendo afirmativamente para a necessidade das obras a serem realizadas nessas comunidades.

Também a mídia internacional já deu a entender que está com as antenas posicionadas na direção do PAC nas favelas. Novamente o britânico “The Guardian” publicou neste mês de fevereiro uma matéria em que registra o poderoso arsenal de armas de posse do tráfico de drogas nas favelas cariocas. Portanto, o embate entre a cidadania e a marginalidade está na ordem do dia nas redações dos principais jornais e agências de notícias do Brasil e do mundo.

Enfim, a população do Rio de Janeiro está diante de uma jornada de esperança, ainda que trabalhosa e difícil face aos indicadores sociais de pobreza e violência. Mas, as dificuldades, longe de desanimar, precisam ser encaradas e transpostas com entusiasmo e a certeza de que o melhor caminho é esse e cumpre trilhá-lo. Com o apoio e a atenção da mídia, ainda a voz mais livre e contundente a favor do cidadão brasileiro.

 

(23 de fevereiro/2008)
CooJornal no 569


Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
Rio de Janeiro, RJ
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