Em todos esses
combates onde o entusiasmo, a tenacidade e a perseverança se
apresentavam como condições básicas para qualquer militância atingir o
seu objetivo, um homem do livro e da fé destacou-se com a sua presença
indelével, despertando encantamento e admiração naqueles que dele se
acercavam. De família ortodoxa e natural da Polônia, Abraham Joshua
Heschel (1907-1972) era filósofo, professor, escritor e rabino. Em 1963,
quando se encontrou pela primeira vez com o reverendo Martin Luther
King, Heschel já tinha escrito a maioria de seus livros, dentre eles os
quatro mais conhecidos: “Os Profetas”, “O Shabat” (sábado), “O Homem não
está Só” e “Deus em Busca do Homem”.
Black Zion
No ensaio escrito
por Susannah Heschel sobre o seu pai e incluído no livro “Black Zion:
African-American Religious Encounters with Judaism” (2000) - que trata
das relações culturais e religiosas dos negros norte-americanos com o
Judaísmo - são realçadas a afeição, a amizade e a convergência de idéias
que uniam esses dois gigantes de seu tempo. “Ambos, Heschel e King,
buscavam as imagens do Êxodus para despertar suas audiências para o
grave problema do racismo”, conta Susannah. Foi o que aconteceu na
conferência Nacional de Religião e Raça realizada em Chicago, em janeiro
de 1963, que reuniu judeus e cristãos em torno de temas como a
discriminação e o preconceito. Na ocasião, Heschel inicia o seu discurso
comparando o dia presente à história bíblica de Moisés e o Faraó: “O
resultado daquela primeira assembléia não se completou”, dispara Heschel,
“porque o Faraó ainda não capitulou. Na realidade foi mais fácil para as
crianças de Israel atravessar o Mar Vermelho do que está sendo para os
nossos irmãos afro-americanos cruzarem certos campus universitários.”
Convidado por John
F. Kennedy para um encontro na Casa Branca, Heschel faz um apelo para
que o presidente exija das lideranças espirituais do país um maior
engajamento pessoal nas questões dos Direitos Civis: “Eu proponho que o
presidente dos Estados Unidos declare estado de emergência moral”,
enfatizou o rabino, “já que nós permaneceremos em falta com Deus
enquanto a humilhação aos negros persistir”.
Em março de 1965,
Heschel e King caminham juntos na emblemática marcha realizada no estado
de Alabama (depois de duas tentativas abortadas pelas forças policiais),
um dos mais segregacionistas do país. Durante cinco dias eles percorrem
os 71 quilômetros que separam a cidade de Selma à capital Montgomery, à
frente de uma multidão que chega a 25 mil pessoas, para defender o
sagrado direito do voto da população negra. “O contrário do bem não é o
mal, e sim a indiferença”, argumenta Heschel. “Em uma sociedade livre,
alguns são culpados, mas todos são responsáveis.”
Vietnã
Naquele mesmo ano
Heschel funda o movimento antibelicista “Clergy and Laymen Concerned
About Vietnam (CALCAV)”, que congrega religiosos e leigos que se opõem à
guerra no Sudeste Asiático. Com a parceria do teólogo cristão John C.
Bennett e do pastor luterano Richard Neuhaus, o grupo discursa em
universidades, sinagogas e igrejas, clamando pelo fim do conflito no
Vietnã. “Se hoje é difícil parar com a guerra, amanhã será muito mais
difícil ”, protesta Heshel.
Em janeiro de
1967, ao final do primeiro encontro nacional da organização, em
Washington, e na presença dos 2.500 representantes de 47 estados,
Heschel lê o documento que resume o pensamento e a disposição dos
participantes: “Chega um tempo em que o silêncio soa como traição. Esse
tempo está entre nós e tem relação com o Vietnã.” A filha de Heschel
conta da angústia do pai acerca do problema: “Freqüentemente eu o via
no meio da noite, incapaz de dormir. A guerra o afligia cruelmente.”
A mensagem e a
mobilização do CALCAV sensibiliza Luther King. Ele ingressa oficialmente
no movimento pela paz e faz um pronunciamento emocionado, ao lado de
Heschel, em Nova York. Assumindo publicamente o seu engajamento, King
louva a missão dos companheiros, dizendo-se profundamente solidário com
os objetivos e o trabalho realizado: “Estou aqui esta noite porque a
minha consciência não me deu outra escolha. É tempo de romper o
silêncio... mesmo não sendo fácil assumir a tarefa de se opor a uma
política de governo, especialmente em tempo de guerra.”
Vaticano II
Heschel também tem
uma atuação única em uma outra missão singular: preparar um texto sobre
os tópicos antijudaicos na liturgia católica, a pedido da instituição
judaica norte-americana “American Jewish Commitee”, e ir a Roma para se
encontrar com o Cardeal Augustin Bea, que supervisionava o texto da
Encíclica Nostra Aetate acerca das relações da Igreja com as outras
religiões. Entre 1962 e 1965, período em que se realiza o Conselho
Vaticano II, Heschel participa de várias audiências de trabalho com o
Papa Paulo VI, ajudando-o a pavimentar o caminho das novas relações
entre judeus e católicos. Em uma de suas correspondências enviadas ao
Vaticano, Heschel é contundente em relação ao parágrafo sobre a
conversão: “A mensagem que considera os judeus candidatos à conversão e
que proclama que o destino do Judaísmo é o desaparecimento, soa
abominável para os judeus de todo o mundo. E como tenho seguidamente
declarado para as lideranças do Vaticano, se eu me deparar com a
alternativa da conversão ou a morte, eu escolho Auschwitz, sem
problema.”
Anos depois, em
1971, quando Heschel viaja à Itália para uma série de conferências, ele
revê Paulo VI em uma audiência reservada. Em seu diário, Heschel deixa
registrado: “Quando o Papa me viu ele sorriu alegremente, com a face
radiante. Apertou a minha mão com ambas as mãos, gesto que repetiu
algumas vezes durante o encontro. Disse que havia lido os meus livros e
que os mesmos eram muito espirituais e belos, e que os católicos
deveriam lê-los. Disse ainda para que eu continuasse a escrever mais
livros, acrescentando que tinha conhecimento da importante influência
que meus escritos exerciam sobre os jovens.”
PROFETAS COMO
EXEMPLO
O estudo da vida
dos profetas bíblicos de Israel fez com que Heschel partilhasse o seu
tempo espiritual com os necessitados e injustiçados. Um dia antes de sua
morte, em meio ao frio e a neve, ele permaneceu de pé durante horas, em
frente a uma prisão, aguardando a liberação de um companheiro ativista -
um sacerdote católico. Era dezembro e Heschel tinha 65 anos.
Filho de rabino,
Heschel nasceu em Varsóvia e estudou em uma Yeshiva (seminário
rabínico). Obteve o grau de Doutor em Filosofia na Universidade de
Berlim e completou sua formação religiosa em “Hochschule”, a academia
alemã de altos estudos judaicos. Em 1940, junto com outros intelectuais
judeus que fugiam do horror nazista, encontrou refúgio nos Estados
Unidos. Seus esforços, porém, para resgatar seus familiares da Polônia
foram infrutíferos. Perdeu a mãe viúva e as três irmãs no Holocausto
(nos campos de morte de Treblinka e de Auschwitz). Nunca mais retornou à
Polônia e à Alemanha, “pois cada pedra e cada árvore traziam
lembranças”.
Professor de Ética
Judaica e Misticismo, por mais de 25 anos, no “Jewish Theological
Seminary of América”, em Nova York, ele visitou Israel em 1967, depois
da Guerra dos Seis Dias. Ao retornar aos Estados Unidos ele publica o
livro “Israel: an echo of Eternity” e emocionado confessa que não tinha
idéia do quão intensamente sentia-se ligado a sua ancestralidade.
No conjunto de sua
obra encontramos amplos temas recorrentes que tratam do significado da
fé, da divindade das ações e da sacralidade do tempo. Ele
afirmava que qualquer ação é um teste porque é nas ações que o
homem toma consciência de seu poder de destruir ou de criar alegria. “O
coração se revela no que o homem realiza, no que ele faz” (é dele a
frase: Quando eu era jovem costumava admirar as pessoas inteligentes,
com a idade passei a admirar as pessoas de bom coração.).
Heschel também
separa a piedade da fé, argumentando que existem atos de piedade sem fé,
já que esta pressupõe uma ligação com Deus. Quanto ao aspecto sagrado do
tempo, o sábado ou shabat seria a materialização do santificado,
“pois este dia representa a eternidade dentro do tempo”. Para o
filósofo, a fascinação do homem pela grandiosidade do espaço e
pelos objetos que pode ver e tocar – aos quais intitula de realidade
– o afasta da verdadeira conquista espiritual que só o entendimento da
sublimidade do tempo é capaz de proporcionar: “O resultado desta
nossa consciência dos objetos é nossa cegueira a toda a realidade que,
de início, não se identifica como um objeto. Ela se mostra óbvia em
nossa compreensão de tempo, que não sendo um objeto palpável, parece
carecer de realidade.”
Assim, ao término
de 2007 e inspirados nos pensamentos de Abraham Heschel, cumprimentamos
a todos os habitantes deste fantástico Universo, desejando um ano de
2008 significativamente espiritual e tocado pelo eterno esplendor do
tempo, que cada vez mais se fará belo e incomparável em cada ato de
nossas vidas.
Feliz Ano Novo!
(29 de dezembro/2007)
CooJornal
no 561