Sheila Sacks
Os cadernos de guerra de
Malaparte |
|
Quando o
jornalista e escritor italiano Curzio Malaparte deu a partida para pôr
no papel as suas crônicas pessoais sobre a guerra no velho continente, a
Alemanha nazista lançava-se, com um apetite voraz, à ofensiva
sanguinária sobre o território soviético, o mais cobiçado e suculento
filé do front oriental. Naquele terrível verão europeu de 1941, Kurt
Erich Suckert – nome de batismo de Malaparte – era correspondente do
jornal Corriere della Sera, na Ucrânia, e ostentava o
salvo-conduto da temida cruz gamada que o autorizava a transitar entre
as barbaridades perpetradas pelas tropas germânicas em sua perversa
escalada de conquista e extermínio. Também o incluía no seleto clube dos
nobres adesistas, diplomatas fascistas, oficiais da Gestapo e
colaboradores diretos do führer, que, nos castelos, consulados e
palácios confiscados e entulhados de móveis e raridades pilhadas,
citavam Homero e dedilhavam Chopin, nos suntuosos banquetes regados ao
mais puro vinho de Borgonha.
Envergando a farda
de oficial italiano, Malaparte cobriu os combates das forças do Eixo nas
frentes da Rússia, Polônia e Finlândia, misturando-se a soldados,
prisioneiros e guerrilheiros em cidades e aldeias arrasadas pelos
canhões e bombardeios. Transitou pelas ruas do Gueto de Varsóvia,
apinhadas de gente maltrapilha e amedrontada; presenciou o pogrom
na cidade de Jassy, na Romênia, onde em uma única noite foram chacinados
mais de 2 mil judeus; e conheceu as prisioneiras do bordel militar de
Soroco, na Bessarábia, meninas de famílias judaicas, bonitas e
inocentes, capturadas e exploradas pelos nazistas. Três momentos cruéis
e dolorosos entre tantos outros que registrou, de forma espantosa, em
seus cadernos de viagem.
Consciente do
conteúdo explosivo de suas anotações e certo de que as mesmas seriam
destruídas se caíssem nas mãos da Gestapo, o autor confiou-as a amigos
diplomatas em Berlim, Madri, Lisboa e Bucareste. Retornando à Itália em
1943, Malaparte finalizou o manuscrito e o escondeu durante algum tempo
no buraco de um rochedo, perto de sua casa em Capri. “Ninguém ignora
como é difícil na Itália, e em grande parte da Europa, a condição
humana. E quão perigosa é a condição de escritor”, lamentava. “Mas,
prefiro essa Europa em destroços, onde tudo esteja por refazer, a ter
que aceitar tudo como uma herança imutável.”
Desafeto
Enfant terrible
da
doutrina fascista, Malaparte tornou-se desafeto do ditador italiano
Benito Mussolini (1883-1945) quando publicou, em 1931, o livro “Técnica
do Golpe de Estado”, obra em que ataca Adolf Hitler e o próprio Il
Duce. O jornalista foi expulso do partido fascista e condenado a
cumprir cinco anos de exílio na ilha de Lipari, no Mediterrâneo, pena
comutada, mais tarde, por interferência direta do conde Galleazo Ciano,
genro de Mussolini. Entretanto, seus livros e reportagens posteriores o
levaram mais algumas vezes à condenação, desta vez trancafiado na prisão
de Regina Coeli, em Roma.
De mãe italiana e
pai alemão, Malaparte nasceu em 1898 na cidade de Prato, a 20
quilômetros de Florença, adotando o pseudônimo literário em 1925.
Segundo ele, uma brincadeira com o nome do conquistador Napoleão
Bonaparte. Aos 16 anos alistou-se no Quinto Regimento Alpino e combateu
na 1ª Guerra Mundial, ganhando várias condecorações de bravura. Fundou e
dirigiu diversas publicações, o que resultou em sua aproximação com
políticos e membros do governo. Atuou como coordenador de imprensa na
Conferência de Versalhes, em Paris (1919), e serviu como adido
diplomático na Polônia (1920). Foi correspondente de guerra na Etiópia,
Grécia e Iugoslávia. Escreveu em torno de 30 livros, muitos deles
relatando as suas vivências nas duas Grandes Guerras.
As anotações
secretas sobre o pesadelo nazista que o autor ocultou, por várias vezes,
no forro de seu casaco e até em um chiqueiro de uma aldeia ucraniana,
transformaram-se na obra intitulada “Kapput” (quebrado, em alemão), o
seu livro mais festejado, publicado em 1944 e traduzido em mais de dez
idiomas. Nele ficou retratado, de forma contundente e admirável, o poder
de alcance da maldade, da impiedade e da infâmia, a abominável trindade
que dominou e contagiou a Europa como um vírus devastador, reduzindo a
frangalhos a sagrada imagem do ser humano, no que ele tem de mais nobre
e grandioso.
No Gueto
Malaparte esteve
no Gueto de Varsóvia em janeiro de 1942, depois de conhecer os guetos de
Cracóvia, Lublin e Czenstochowa. Ele conta que a “cidade proibida”
(assim chamada pelos nazistas) era circundada por um muro alto de
tijolos vermelhos, “construído pelos alemães para fechar o gueto, como
uma gaiola”. Na porta, vigiada por uma escolta de soldados armados da SS
(Schutzstaffel - organização paramilitar nazista), estava afixado um
edital instituindo a pena de morte para qualquer judeu que tentasse
fugir. Por ordem expressa do governador alemão de Varsóvia, Ludwig
Fischer, um guarda da Gestapo (polícia secreta nazista), “de olhar claro
e frio”, o acompanhou “como uma sombra” durante toda a visita.
O jornalista
relata que a sua presença ao lado de um guarda da Gestapo (polícia
secreta nazista) despertou a curiosidade e o medo na multidão de “rostos
barbudos, afogueados pelo frio, pela febre e pela fome”. Nas ruas do
gueto ele se viu forçado a saltar, de espaço em espaço, por cima de
cadáveres, já que “os mortos jaziam abandonados na neve, entre
candelabros apagados, à espera das carroças dos coveiros”. A mortandade
era grande e “muitos permaneciam na entrada das casas, nos corredores,
nos patamares das escadas ou sobre as camas nos quartos apinhados de
gente pálida e silenciosa”.
Malaparte observa
ainda que os mortos eram recolhidos nas ruas e nas casas por grupos de
jovens estudantes deportados da Alemanha, Áustria, Bélgica, França,
Holanda e Romênia. “Eram jovens intelectuais educados nas melhores
universidades da Europa. Falavam francês, romeno e alemão. Entretanto,
agora se apresentavam andrajosos, famintos, devorados pelos insetos e
ainda doloridos das pancadas recebidas, dos insultos, dos sofrimentos
padecidos nos campos de concentração e na terrível odisséia que os
trouxera de Viena, Berlim, Munique, Paris, Praga e Bucareste até o gueto
de Varsóvia.”
Jovens coveiros
Impressionado com
os jovens coveiros, Malaparte escreve: “Eu me detinha a observá-los no
seu piedoso trabalho. Tinham no rosto uma luz belíssima, nos olhos, uma
juvenil vontade de se ajudarem mutuamente, de socorrer a imensa miséria
do seu povo. Eles levantavam os mortos com delicadeza e os colocavam nas
carroças puxadas por outros jovens andrajosos e macilentos.” Dias antes,
nos guetos de Cracóvia e Czenstochowa, ele tivera uma estranha
experiência com outros jovens judeus que, ao vê-lo uniformizado e ao
lado de um guarda nazista, foram ao seu encontro estampando um
misterioso ar de felicidade. “Parecia que a angústia da espera tinha
chegado ao fim e que acolhiam aquele instante, até então temido, como
uma libertação.” O jornalista conta que ao explicar que não era agente
da Gestapo e nem sequer alemão, notou que a desilusão e a angústia
tomaram conta de seus rostos. “Um deles”, lembra, “já tinha tirado o
xale imundo e colocado nos ombros de uma senhora”, um gesto de adeus que
se repetia entre os judeus quando a polícia ia buscá-los. “Ele estava
lendo, em um canto da sala, quando eu apareci à porta da casa”, relata o
autor. “Levantou-se de chofre, abotoou os sapatos, endireitou os trapos
sujos que lhe serviam de meias, procurou o colarinho da camisa
esfarrapada debaixo da gola do paletó. Tossia, cobrindo a boca com a
mísera mão.”
Sem Utilidade
Desfazer-se das
roupas e distribuí-las a parentes e amigos quando a Gestapo batia à
porta era quase uma rotina entre os moradores dos guetos. Malaparte
recorda que viu dois judeus completamente nus, um deles um rapazote de
16 anos, caminhando sobre a neve em uma manhã glacial de inverno.
Ladeados por milicianos armados da SS, eles enfrentavam um frio cortante
de 35 graus abaixo de zero. Sobre essa cena incrível, narrada pelo
escritor ao governador da Cracóvia, Otto Wächter (morto em 1949), este
justificou “amavelmente” a situação, explicando que os judeus se despiam
porque, para eles, as roupas já não tinham utilidade.
Em outra
oportunidade, convidado para um jantar de gala em homenagem ao
general-governador da Polônia, Hans Frank (enforcado em 16 de outubro de
1946), o jornalista se viu envolvido em um animado bate-papo sobre o
gueto de Varsóvia. Era um banquete dedicado à Diana caçadora, figura
mitológica, e a cúpula nazista compareceu em peso. O local era o palácio
Bruhl, antiga sede do Ministério das Relações Exteriores da Polônia
transformado no QG do governo alemão de Varsóvia. No cardápio iguarias
como faisões, lebres e um gamo das florestas de Radziwilow, trazido por
dois criados de libré azul. Em seu dorso estava cravada uma rubra
bandeirinha hitleriana com a negra cruz gamada”. Para a sua surpresa,
Malaparte foi o primeiro a ser servido pela “virtude” de ter nascido
italiano. Presente à mesa, o governador de Varsóvia, Ludwig Fischer
(morto em 1947), escorria com a colher um molho dourado sobre as fatias
de carne e detalhava como eram sepultados os judeus no gueto: ”uma
camada de cadáveres e uma camada de cal”, explicava, como se dissesse
“uma fatia de carne e uma camada de molho”.
Modelo
Saboreando um
charuto após o jantar, o autor lembra que um dos convidados
ofereceu-lhe, em um cálice de cristal, a tradicional bebida dos
caçadores alemães, o turkischblut ou “sangue de turco”, uma
mistura do rubro vinho de Borgonha, “um Volnay denso e tépido, com o
pálido champagne de Mumm”. Ao seu lado, o “general-gouverneur
Frank” elogiava a organização imposta ao gueto de Varsóvia,
considerando-a um “verdadeiro modelo para toda a Polônia”. Por sua vez o
governador de Varsóvia, Fischer, discursava sobre a eficiência de seu
trabalho, assinalando, com orgulho, “que no mesmo espaço em que, antes
da guerra, viviam 300 mil pessoas, estavam agora mais de um milhão e
meio de judeus”. Apenas, modestamente se eximia da culpa de todos no
gueto ficarem “um pouco apertados”.
Os diálogos
surrealistas daquela elite cruel e cínica eram anotados mentalmente por
Malaparte em sua trajetória de repórter de uma civilização em ruínas.
Enquanto os homens de Hitler discorriam sobre judeus e guetos no
gabinete atapetado cheirando a conhaque e tabaco, e suas mulheres – as
fraus – “tricotavam ao pé do fogo de lenha de carvalho que
crepitava na lareira”, a realidade nas gélidas ruas do gueto de Varsóvia
não comportava eufemismos. Ali, “bandos de cães ossudos farejavam o ar
atrás dos fúnebres comboios, e tropéis de meninos maltrapilhos, trazendo
no semblante os sinais da fome, da insônia e do medo, recolhiam na neve
os trapos, os pedaços de papel, as latas vazias, as cascas de batatas e
todos aqueles preciosos rebotalhos que a miséria, a fome e a morte
sempre deixam atrás de si”.
UM NOME NAS
ESTRELAS
Queridinho
do presidente francês Nicolas Sarkozy (durante as eleições, em abril,
perguntado pelas suas preferências literárias, o então candidato revelou
aos jornalistas que é apaixonado por Kapput), Curzio Malaparte subiu a
alturas poucas vezes alcançadas por seus pares, ao batizar, com o seu
nome, uma estrela no espaço sideral. Isso se deu em outubro de 1980,
vinte e três anos após a sua morte. O astrônomo tcheco Z.Vávrová, do
Observatório de Klet, descobriu o planeta número 03479, um corpo
celestial do tamanho de um asteróide gigante e o denominou de Malaparte,
uma homenagem ao seu autor favorito.
Testemunha ocular
da chacina de Jassy, Malaparte também se transformou em personagem e
inspirou o escritor norte-americano radicado na França, Samuel Astrachan,
a escrever a obra “Malaparte in Jassy”, publicada em 1989, onde o autor
rememora os passos do jornalista, antes e durante o pogrom. Ainda
sobre a tragédia de Jassy, o diretor do Instituto do Congresso Judaico
Mundial de Jerusalém, professor Laurence Weinbaum, transcreveu trechos
de Kapput em seu trabalho “A Banalidade da História e da Memória:
A Sociedade Romena e o Holocausto” (2006). Especialista em assuntos do
Leste Europeu, Weinbaum cita o testemunho de Malaparte ao cobrar do
governo da Romênia o reconhecimento oficial de sua participação, ainda
que tardio, na matança de 15 mil judeus durante a ocupação nazista.
Malaparte teve seu
nome incluído na lista de autores não recomendados pela Igreja Católica,
assim como foram Galileu Galilei e Baruch Spinoza. Implantado pelo Papa
Paulo IV, em 1559, o Index Librorum Probitorum (Índice dos Livros
Proibidos) tinha a finalidade de proibir a leitura de determinados
textos (inclusive o Talmud e o Corão), sob pena de excomunhão. Nas suas
várias versões, o Index acabou se tornando uma espécie de guia
dos livros que deveriam ser lidos, uma espécie de fonte de orientação
para quem tentava entender o mundo através dos livros. Em 1966, o
Index foi abolido pelo Papa Paulo VI.
(08 de dezembro/2007)
CooJornal
no 558