Sheila Sacks
FILOSOFIA, POLÍTICA E LIBERDADE |
|
O sugestivo bordão
do nosso Hino da Proclamação da República - “Liberdade, Liberdade,
Abre as Asas sobre Nós” - bem que poderia servir de cartão de visita
para o nosso entrevistado. Ele é filósofo de formação, com doutorado na
Universidade de Paris (Sorbonne), professor titular da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e autor de mais de 10 livros sobre
filosofia, política, ética e metafísica (quatro em francês e três em
espanhol).
Mas, longe de se
confinar em gabinetes ou salões acadêmicos, Denis Lerrer Rosenfield, 57
anos, é um militante que vai à luta para defender “as liberdades” e as
escolhas individuais. Com mais de 200 artigos publicados nos principais
jornais do país (O Globo, O Estado de São Paulo, Folha
de São Paulo e Correio Braziliense, entre outros) e dezenas de
textos incluídos em importantes livros didáticos, o filósofo gaúcho tem
se revelado um combatente destemido e polêmico, dono de um arsenal de
conceitos e argumentos que vem desarmando muita gente. Suas armas de
fogo são a inteligência, a cultura e uma linguagem direta e acessível.
Editor da revista “Filosofia
Política”, fundador da Sociedade Nacional de Pós-Graduação em
Filosofia, pesquisador do CNPq, órgão do Ministério da Ciência e
Tecnologia (foi seu vice-presidente em 1999), e presidente da Sociedade
Hegel Brasileira, Denis Lerrer afirma, destemidamente, que não é
pacifista. E dá as razões, lembrando que Churchill era a favor da guerra
contra o nazismo e, graças a ele, o totalitarismo nazista foi derrotado.
De sua Porto Alegre
natal, onde vive, ensina e escreve, o autor de “Retratos do Mal”,
obra que enfoca o terrorismo e os fenômenos totalitários do século XX, e
de “Democracia Ameaçada”, uma análise sobre a esquerda brasileira
(em que põe em xeque as ideologias e as ações das organizações e
“movimentos sociais” em nosso país), fala sobre temas universais como a
noção do bem e do mal, autoritarismo, religião e o sagrado direito à
diferença.
Como filósofo, qual
foi a sua leitura sobre o referendo realizado no país, o do
desarmamento, em 2005, cujo resultado surpreendeu muita gente?
-
O referendo passou
várias mensagens: 1) a sociedade brasileira não aceita ser tutelada por
um Estado que procura lhe impor uma determinada noção do bem. Ela
retomou para si esse direito de cidadão, o de escolher aquilo que
considera melhor para si. Desta maneira, os cidadãos desse país
valorizaram o direito e a liberdade de escolha; 2) o Estado brasileiro
deve cumprir com sua função primeira, a saber, a segurança pública e não
criar um falso problema, o de que os cidadãos de bem são os responsáveis
pela criminalidade; 3) urge, pois, desarmar os bandidos, reformar o
código processual penal, construir presídios, reformar as polícias e
controlar o narcotráfico. E essas são obrigações do Estado; 4) e, por
fim, a não aceitação de propaganda enganosa, como se o referendo fosse
sobre o desarmamento, quando, na verdade, o Estatuto do referendo não
foi o objeto do referendo, mas apenas um artigo deste, relativo ao
comércio de armas e munições.
A autoridade do Estado é em essência
tirana?
-
Não.
Confunde-se, muito freqüentemente no Brasil, autoridade com
autoritarismo. A autoridade estatal é própria de qualquer sociedade
livre, que procura defender os seus direitos e as suas liberdades em
suas várias acepções: liberdade econômica, liberdade religiosa,
liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade política. Neste
sentido, a autoridade do Estado deve estar voltada contra todos aqueles
que procuram minar os fundamentos da democracia, aí incluindo a defesa
da propriedade privada e do estado de direito. O autoritarismo surge,
por sua vez, quando o Estado extrapola de suas funções, não assegurando
essas liberdades e direitos e se colocando na posição daqueles que
pretensamente saberiam aquilo que é o “melhor” para cada cidadão.
Apostar no Estado para transformar a
sociedade é apostar na força?
-
Num
certo sentido penso que podemos dizer que os Estados que procuram impor
aos seus cidadãos aquilo que consideram certo e errado, bom e mau, se
vêem obrigados a usar da força, pois homens e mulheres livres pensam por
si mesmos e não aceitam essa forma de coerção. A grande aposta de
transformação, no meu entender, é aquela calcada em idéias, no debate e
discussão livres, no interior de uma cena pública que reconhece que
somos todos iguais no exercício dos direitos e das liberdades, no uso
público da razão.
A religião ainda é o abrigo individual
contra a impessoalidade das ações do Estado?
-
A
religião cumpre essa função de permitir ao indivíduo um recolhimento em
si mesmo, no questionamento de sua conduta e dos seus, numa relação em
que cada um se coloca num tipo de relacionamento direto com o absoluto,
com Deus. Não é por acaso que a liberdade religiosa sempre foi
considerada como uma das grandes conquistas da humanidade, pois ela
permitiu o desenvolvimento da subjetividade e dos direitos dessa
subjetividade contra as imposições estatais. Quando o Estado procura
entrar nesse domínio da subjetividade, quando procura impor uma
determinada crença ou conjunto de valores, é o reino da tirania que
começa a imperar.
E o sentido da vida e
os ideais? Eles se fortalecem ou ao contrário, ficam mais fracos,
naqueles que foram vítimas de um ato de força institucional?
-
Normalmente, pode-se dizer que o sentido da vida e os ideais se
fortalecem quando indivíduos ou grupos sociais são perseguidos ou são
vítimas de atos de força. Tudo depende, no entanto, da época e da
mentalidade desses indivíduos, pois os totalitarismos contemporâneos,
nazista ou comunista, mostraram o quanto homens e mulheres podem ser
manipuláveis por um poder estatal que não recua diante de nenhum
escrúpulo moral. Atualmente, numa sociedade de massas, digital, com
presença marcante dos meios de comunicação, um fenômeno desse tipo
poderia ser ainda mais acentuado. Se os valores já são fracos, a
manipulação seria maior.
A escolha pelo mais fácil, ou seja, estar
sempre ao lado do mais forte e do poder, é uma característica de
personalidade?
-
Não
penso que se possa dizer isto como regra geral. Se tomarmos as pessoas
como seres movidos por desejos, pela busca do prazer, por exemplo, não
podemos chegar necessariamente à conclusão de que estar ao lado do mais
forte signifique uma escolha mais fácil na perspectiva de realização e
da satisfação pessoal. Pode, isto sim, haver a cautela, o princípio da
realidade, diria Freud, do ponto de vista da postergação da realização
desses desejos.
Vale tudo em nome da paz?
-
Tudo
depende do que se considere paz. Eu não sou pacifista. Chamberlain era
pacifista, enfraqueceu a Inglaterra e fez acordos com Hitler. Churchill
era a favor da guerra contra o nazismo e, graças a ele, o totalitarismo
nazista foi derrotado. Naquela ocasião, ser pacifista significava
compactuar com essa forma de dominação, servindo aos seus interesses.
Hitler não tinha nenhuma dificuldade de defender essa forma de
pacifismo, pois lhe convinha perfeitamente. Churchill lutou pela guerra
e pelas liberdades.
Ainda existem nações que põem em perigo
a sociedade civilizada?
-
Sem
sombra de dúvidas. Há nações párias que se colocam fora das normas de
vida civilizada e devem ser tratadas enquanto tais. Estados que fomentam
o terrorismo como o Afeganistão talibã se colocam, por suas
próprias ações, fora do estado de direito e exigem da comunidade
internacional ações que ponham termo às suas iniciativas. No passado
recente, a Líbia se colocou numa posição desse tipo e foi objeto de
represálias que a fizeram recuar, desde os bombardeios de Reagan até as
punições impostas a esse país como respostas às suas ações terroristas
nas explosões de aviões.
Quais são as principais doenças
espirituais do homem contemporâneo?
-
Diria
que a principal reside em pensar que todas as culturas e todas as formas
de sociedade são equivalentes e de igual valor. Isto numa determinada
época se chamou de direito à diferença. Ora, há culturas e sociedades
que procuram a universalidade, valores que sejam iguais para todos,
enquanto há outras que procuram impor pela força a sua própria
particularidade, como se esta tivesse um valor absoluto. O terror
islâmico é um exemplo deste tipo. Torna-se necessário que a civilização
ocidental abandone seus sentimentos de culpa e afirme a necessidade e a
liberdade de julgar moralmente.
(10 de novembro/2007)
CooJornal
no 554