
11/08/2007
Ano 11 -
Número 541
Sheila Sacks ARQUIVO |
Sheila Sacks
Na Casa de
Freud |
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Poucos sabem que nos últimos dois anos um brasileiro presidiu a renomada
instituição “Internacional Psychoanalysis Association (IPA)”, fundada
por Sigmund Freud, em 1910, com sede em Londres. Gaúcho de Porto Alegre,
Cláudio Laks Eizirik, 62 anos, é médico-psicanalista e professor do
Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (foi também diretor da Faculdade de Medicina da
universidade). Autor de 4 livros e com mais de 100 artigos publicados em
jornais, revistas e resenhas técnicas, ocupou a presidência da Sociedade
Psicanalítica de Porto Alegre (1991) e da Federação Psicanalítica da
América Latina (1998), e também uma das vice-presidências da IPA. Eleito
para a presidência da referida Associação em 2005, Eizirik foi o
primeiro brasileiro a reinar na casa do mestre dos sonhos e das
neuroses. A organização, muito respeitada e influente - e que teve Carl
Gustav Jung como primeiro presidente -, regula o exercício da
psicanálise no mundo e reúne 11.500 doutores de mais de 50 países.
Em outubro de 2006, como parte das comemorações dos 150 anos do
nascimento de Freud, Eizirik participou de um painel de debates na ONU,
cujo tema abordava a transmissão, através das gerações, do ódio, da
violência e da guerra. O brasileiro destacou a urgência de uma ação
dirigida às crianças e às famílias nas quais essa situação se manifesta.
“Melhorar as condições básicas de vida, saúde e educação por meio de
massivos investimentos nas áreas pobres do mundo é uma maneira concreta
e essencial de prevenir o ódio, a guerra e a violência”, assegurou. Mais
adiante ele citou a experiência da “Barenboim-Said Foundation”, onde,
por intermédio da música, crianças israelenses e palestinas aprendem a
escutar umas às outras e a tocar juntas (o projeto, concebido pelo
pianista e maestro argentino radicado em Israel, Daniel Barenboim, e
pelo escritor e professor palestino Edward Said, já falecido, iniciou-se
em 1999 com a criação da orquestra “West-Eastern Divan”, formada por
músicos judeus e árabes).
Dirigindo-se a uma platéia composta de psicanalistas e representantes de
Organizações Não-Governamentais (ONGs) envolvidas com a preocupante
questão da disseminação da violência no planeta, Eizirik contou que, sob
a sua gestão, estavam sendo criadas novas Comissões na IPA voltadas para
o estudo, a análise e a apresentação de propostas visando a prevenção da
transmissão do ódio, do racismo e do preconceito, que deságuam, quase
sempre, no anti-semitismo e no terrorismo. “A contribuição psicanalítica
para o problema ocorre de duas maneiras. Primeiro, pelo tratamento de
pacientes cuja transformação psíquica produzirá também mudanças nas
gerações que os sucederão. Segundo, participando de atividades
integradas e iniciativas nas quais se podem mostrar o quanto uma escuta
aberta pode corrigir percepções distorcidas e ampliar a habilidade de
tolerância e identificação com os outros.”
Trauma e envelhecimento
Por ocasião do 44º Congresso Internacional da IPA realizado no Rio de
Janeiro, em 2005, um outro assunto pautou o encontro e pôs na berlinda
uma palavrinha usada no dia-a-dia sem muito compromisso, mas que na
psicanálise tem o peso e o tamanho de um canhão: o trauma. O tema, com
suas variantes, foi dissecado durante quatro dias por destacados
especialistas oriundos dos quatro cantos do mundo. Tendo como cenário o
mar e as areias de Copacabana, a questão mereceu tratamento prioritário
pela devastação que é capaz de produzir no ser humano. Aproveitando a
oportunidade, entrevistei Dr. Eizerik, abordando justamente uma etapa da
vida que não chega a resultar em um trauma, mas também é capaz de
provocar alguns padecimentos: o envelhecimento físico do ser humano,
esse bicho-papão que aterroriza homens e mulheres, sem distinção.
O trauma foi tema do recente congresso da IPA. A velhice é um tipo de
trauma?
– Não. A velhice não é um trauma, é apenas mais uma etapa do ciclo
vital, com suas naturais perdas e ganhos, como as etapas anteriores.
A população do planeta está envelhecendo. Como lidar com isso?
– Há uma nova camada da população, com novas necessidades de saúde,
educação continuada, lazer e formas de participação. Penso que os
sistemas de saúde necessitam ampliar seu espectro de atendimento aos
velhos e que novas formas para ampliar os espaços de participação sejam
criadas ou desenvolvidas.
Na Europa, famílias com grau mais elevado de educação, têm menos contato
com os idosos. E no Brasil?
– Ainda há bastante contato, em muitas áreas do Brasil, em especial as
rurais e cidades menores. Nos grandes centros urbanos, a situação da
vida é semelhante em todos os países. Os avós, muitas vezes, têm uma
participação no cuidado aos netos, mas cada vez se observa mais a
distância e o isolamento. Além de haver a necessidade da família, é
preciso reconhecer que os mais jovens lutam por sua própria ascensão
pessoal e profissional, e desta forma cabe aos velhos buscar as sua
próprias realizações e participação em grupos recreativos, religiosos e
de convivência.
Como os idosos convivem com a sua própria imagem física?
- Depende do grau de narcisismo, por um lado, e dos cuidados com a saúde
nos períodos precedentes. Uma pessoa muito narcisista, ou seja, para
quem a aparência é vital, a imagem que apresenta é o mais importante.
Ficar mais velha, com as alterações inevitáveis que a idade traz, pode
ser sentido como uma perda irreparável. E aí surgem os exageros das
cirurgias plásticas em busca de uma impossível eterna juventude. Quanto
aos cuidados prévios, quanto mais a pessoa for capaz de proteger a sua
saúde, praticar exercícios e manter uma atividade física até a velhice,
melhor será a sua relação com a sua própria imagem física e mental. O
antigo ditado latino de uma mente sadia em um corpo sadio continua
revelando a sabedoria de todos os tempos.
Qual a abordagem psicoterápica em relação às perdas e ao luto nos
idosos?
- Esta é uma das áreas mais bem estudadas e desenvolvidas da psicanálise
e das psicoterapias e orientação analítica. É possível abordar e
elaborar as perdas e os lutos de forma eficaz nos idosos, entendendo
seus significados inconscientes, examinando as fantasias ou idéias que a
pessoa tem sobre o que causou tal perda, e estimulando saídas criativas
e reparadoras, através de novos desafios, relacionamentos e realizações.
Freud, aos 70 anos, considerou o corpo uma das fontes do mal-estar
humano. A psicanálise acredita em velhice feliz?
– Naturalmente. É possível ser feliz na velhice, e o próprio Freud foi
um velho sadio e feliz, sob muitos aspectos, apesar de ter enfrentado um
câncer e várias cirurgias. Melanie Klein, outra grande analista, afirmou
que a velhice sadia ou feliz é possível quando a gratidão por
satisfações passadas se mantém, a inveja dos mais jovens não predomina e
o idoso é capaz de se identificar com o progresso e as realizações de
seus filhos e netos, desfrutá-las e sentir que a sua própria vida
continuará depois de sua morte, através deles.
Cuidar de netos faz bem aos idosos?
- Faz muito bem. Os avós são chamados de “pais com açúcar”, pois não têm
a responsabilidade de educar os netos, com os necessários conflitos e
limites. Costumam ter mais tempo e podem aproveitar e conviver com mais
calma do que no passado, com seus próprios filhos. É em geral uma bela
experiência que produz prazer, alegria e o sentimento de reviver, muitas
vezes melhor, as alegrias do desenvolvimento físico e mental de uma
criança.
Viver em grupo, em instituições para idosos, é uma boa alternativa?
- É a última e a pior, só aceitável quando as outras falharam. O ideal é
que cada idoso tenha a sua casa, sua autonomia, seus rendimentos, sua
rede social. Se a saúde física e mental declina, se surge a viuvez, se
não há como viver com algum filho, a alternativa da instituição
geriátrica surge, e neste caso é recomendável que haja um programa de
atividades, saídas, visitas, cuidados médicos, psicológicos e sociais e
o estímulo ao interesse pelo mundo e pelas pessoas.
Religião e Psicanálise
Como a psicanálise lida com a fé religiosa?
– A psicanálise respeita a fé religiosa e procura entender o seu
significado para cada pessoa, em seu contexto cultural e familiar. Ter
uma religião não significa ter um problema, a não ser quando a religião
assume aspectos patológicos, como no caso dos diferentes
fundamentalismos. Ao mesmo tempo, a psicanálise estuda as origens da fé
religiosa, que se situam nas relações infantis com pessoas poderosas, os
pais, recriando uma vivência de veneração aos grandes pais da infância,
que tomam a forma de diferentes divindades.
A tradição cultural judaica influenciou o trabalho de Freud?
– Sem dúvida. Embora não sendo religioso, o que é o caso da maior parte
dos psicanalistas, Freud sempre se considerou judeu e conhecia muito bem
a tradição cultural judaica. Essa tradição cultural, assim como o seu
enorme conhecimento da mitologia clássica greco-romana e da cultura e da
ciência de seu tempo, foram as bases de sua teorização, a partir do que
observava ao atender seus pacientes. O modo dialético de argumentação, a
formulação de perguntas para abordar problemas, um certo ceticismo
irônico, o uso de pequenas histórias ou parábolas, e uma particular
forma de humor – características da tradição cultural judaica -, estão
presentes por toda a obra de Freud.
Por que Freud escolheu Moisés e não Abraão para falar de monoteísmo em
seu livro?
– Porque estava examinando uma questão particular e dispunha de fontes
históricas e arqueológicas ou literárias que tornavam Moisés a figura
mais atraente e enigmática por ter vivido entre duas culturas
semelhantes e antagônicas. Mas esta é apenas a minha hipótese para esta
pergunta. A verdadeira razão da escolha não se pode saber, pois o autor
já não tem como respondê-la.
A sociedade contemporânea atua na perda da identidade cultural e
religiosa das minorias, como no caso da judaica?
- Muito difícil de dizer, pois depende dos diferentes contextos. As
minorias sempre foram perseguidas, mas a judaica se mantém com
impressionante vitalidade, apesar de tudo. Mas, a globalização é inimiga
das peculiaridades específicas das minorias e das culturas, que devem
ser mantidas e protegidas, já que o sabor regional, cultural, é o
verdadeiro sabor.
Viver no exílio é uma opção ou uma vocação do povo judeu?
- Nem uma, nem outra, mas o resultado de um conjunto de circunstâncias
históricas, políticas, econômicas e sociais. O fato tem sido este, e o
seu resultado é uma cultura particular, o viver entre distintos mundos,
entre fronteiras e identidades, que caracteriza muitos judeus ao longo
dos séculos.
Qual foi o maior trauma coletivo do século XX e suas conseqüências?
- Houve vários grandes traumas, como a incapacidade da humanidade em
usar os grandes progressos científicos e tecnológicos para contrapor à
barbárie, como a que ocorreu nas duas grandes guerras mundiais, com o
Holocausto e com milhões de vítimas de outras nacionalidades: os
massacres na África, a bomba atômica no Japão, as lutas
fundamentalistas, os massacres na Sérvia e tantos outros. Uma
conseqüência é o sentimento de perda em muitas ilusões, como uma visão
romântica da capacidade humana de progredir e aprender com a
experiência.
O terrorismo já pode ser considerado o trauma coletivo do século XXI?
- Estamos no início do século e o terrorismo é uma das pragas atuais.
Mas não esqueçamos de outros terrorismos, como a brutal desigualdade de
renda e distribuição de bens, a fome e a miséria, a violência de nossas
metrópoles, as lutas étnicas, os fanatismos religiosos. Mas nada disto
nos autoriza a perder a esperança de que, como pretendia Freud, algum
dia a razão poderá se sobrepor a tanta barbárie.
Em Berlim
Dr. Cláudio Eizerik encerrou o seu período na presidência do IPA no
decorrer do 45º Congresso Internacional da entidade, realizado em
Berlim, entre os dias 25 e 28 de julho de 2007. Com o tema “Recordar,
Repetir e Elaborar na Psicanálise e na Cultura de Hoje”, o congresso
retomou o tema freudiano da memória justamente em Berlim, 85 anos depois
do último encontro da IPA naquela cidade, em 1922.
O editor da Revista Brasileira de Psicanálise, Leopol Nosek, lembra
também outra data marcante na história da Psicanálise e de Berlim,
reforçando a escolha do tema deste encontro: “O ano de 1933 marcou a
ascensão do nazismo na Alemanha, fato que causou uma diáspora dos
psicanalistas judeus, resultando inclusive na vida de Adelheid Koch ao
Brasil, introdutora da prática analítica em nosso meio”.
O Congresso em Berlim teve três grandes variantes desenvolvidas por
autores consagrados: o alemão Werner Bohleber, representante da Europa,
que falou sobre ”Recordação, trauma e memória coletiva: a luta pela
recordação em psicanálise”, tendo o Holocausto e seus efeitos
posteriores como abordagem; o argentino Norberto Marucco, que demonstrou
a existência de uma conexão entre repetição, recordação e destino: e o
norte-americano Jonathan Lear, que fez um relato de como a civilização
elabora os problemas que enfrenta ao ser ameaçada de destruição.
(11 de agosto/2007)
CooJornal
no 541
Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras
Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO
JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
Rio de Janeiro, RJ
ssacks@oi.com.br
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