Sheila Sacks
NOSTRADAMUS E A FONTE OCULTA
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O maior fenômeno midiático de todos os tempos tem nome e sobrenome:
Michel de Nostradame, codinome Nostradamus. Jogando por terra conceitos
básicos da boa comunicação, como a clareza e a objetividade, o mago é o
exemplo mais radical de que a desordem redacional dá ibope.
Valendo-se de uma misteriosa e complexa fonte de informações – a mística
judaica – Nostradamus fez seu pé-de-meia junto aos poderosos e, de
quebra, ganhou uma cadeira cativa na galeria dos notáveis da História.
Ídolo na Internet
Já virou rotina na
mídia: a cada desastre natural, ato de terrorismo ou situação anormal no
planeta, uma multidão de curiosos e pseudo-estudiosos surgem do nada
para garimpar o seu minuto de fama, divulgando rocambolescas teorias
com base em obscuros versos de um médico-astrólogo que viveu na
Renascença. Nascido em 1503, na região da Provença, no sul da França,
Michel de Nostradame transformou-se no maior fenômeno literário e
cibernético de todos os tempos. Segundo os pesquisadores de plantão,
depois do 11 de setembro (2001) Nostradamus ganhou status de ídolo,
sendo uma das palavras mais acessadas na Internet. Também estão
contabilizados milhares de livros, cujos autores recontam e interpretam,
a seu bel-prazer, os textos do vidente, muitos com a ressalva de que
dedicaram 30 a 40 anos de suas vidas em pesquisas full-time.
Talvez esta seja uma das razões para que muitos afirmem que As
Profecias seja o livro mais editado de todos os tempos, depois da
Bíblia. Também conhecida como Centúrias, a obra é uma seqüência
de 942 quadras (versos em quatro linhas), agrupadas em conjuntos de 100.
O primeiro fascículo foi publicado em 1555, e os demais, dois e três
anos depois. Em 1568, dois anos após a morte do vidente, apareceu a
versão que chegou até os nossos dias, com a inclusão de mais três
centúrias.
Influência dos avós
Em seu livro “The
Jewish Doctor: A Narrative History”, o norte-americano Michael Nevins
conta que ambos os avós de Nostradamus eram médicos e o influenciaram em
seus estudos de matemática, astrologia, latim, grego e hebraico. “Eles
participaram ativamente da educação do neto, introduzindo-o na medicina,
no trato com as ervas naturais e, principalmente, no secreto estudo da
Cabala e da alquimia”. Segundo o autor, que também é médico, quando o
rei da França, Luis XII, conhecido como o Pai do Povo (reinou de 1498 a
1515), obrigou os judeus a se converterem, ameaçando com o confisco de
bens e a pena de morte, a família de Nostradamus obedeceu, mas
secretamente continuou a professar a religião judaica. Formado pela
Universidade de Montpellier, Nostradamus começou a praticar medicina a
partir de 1525. Ele viajava bastante, exercendo a sua função de médico,
ainda que praticasse uma medicina pouco ortodoxa, com o uso de ervas e
plantas. Isso durante o dia, porque quando chegava a noite, ele
reunia-se à rede secreta de alquimistas e cabalistas em seus estudos,
principalmente no campo da astrologia. Nevins relata que Nostradamus, em
1537, teve a Inquisição em seu calcanhar e durante seis anos ele vagou
pela Europa, sendo os seus passos, durante esta época, pouco conhecidos.
Com a publicação de suas primeiras profecias, ele conquista a
fama e torna-se o favorito da rainha Catarina de Médicis (1519-1589).
Estudioso
da Cabala
Para o francês
Robert Benazra, fundador do Cahiers Kabbalah (revista de estudos
sobre a mística Judaica, na década de 1980) e pesquisador do
Répertoire Chronologique Nostradamique - um compêndio de 700 páginas
com documentos e publicações sobre Nostradamus - o estilo literário das
profecias lembra os textos do Talmud (comentários rabínicos sobre
a Torá/Velho Testamento), “sem uma ordem cronológica definida, saltando
freqüentemente de um tema para outro, tendo por base a associação de
idéias e apoiados em um jogo de palavras somente compreensível para os
iniciados”. Benazra destaca que o astrólogo, em carta ao seu filho
César, dá a entender que é um estudioso da Cabala, ao afirmar que
inúmeras obras escondidas ao longo do tempo lhe foram reveladas. Os
livros seriam o Bahir, o Zohar e o Yetsirah (que
fala da criação do mundo), documentos fundamentais para o estudo da
Cabala. Os trabalhos já seriam conhecidos na Provença, nos séculos XIII
e XIV, trazidos pelos ancestrais judeus de Nostradamus. Em outro trecho,
o vidente diz textualmente que “as revelações são recebidas em minhas
continuadas vigílias noturnas”, em alusão aos estudos da Cabala
que devem ser feitos, preferencialmente, entre a meia-noite e a
madrugada. Ele também escreve que o “Deus imortal faz revelações aos
profetas através de anjos bons e em meio ao fogo”, lembrando Moisés no
deserto e a sarça ardente (Êxodo3.2). Já na “Carta a Henrique II, Rei da
França” (marido de Catarina de Médicis, que reinou de 1547 a 1559),
Nostradamus faz um registro da sua hereditariedade ao assinalar o
instinto natural recebido de seus antepassados.
Religião e Tradição
O caráter
conservador presente nos escritos e nas observações da quase totalidade
dos místicos é apontado pelo renomado historiador e teólogo alemão,
Gershom Scholem (1897-1982), como uma característica resultante da
própria educação recebida pelo aprendiz e da influência religiosa do seu
guia espiritual, que vai inspirá-lo e o conduzir pela vida afora (no
caso de Nostradamus, os seus avós). Na obra “A Cabala e o seu
Simbolismo”, Scholem observa que o místico sempre carrega dentro de si
uma herança antiga, permeada de elementos tradicionais, e com símbolos
de seu próprio mundo. “Por que um místico cristão sempre tem visões
cristãs, e não as de um budista?”, dispara o autor, que lembra ainda que
a palavra Cabala significa tradição recebida. Outro dado
importante é que Nostradamus nasceu no berço europeu da Cabala, onde por
volta de 1180, apareceria o surpreendente documento cabalista conhecido
como Sefer Bahir (Livro Luminoso), escrito numa mistura de
hebraico e aramaico. Segundo Scholem, esse pequeno livro de 30 a 40
páginas, é um texto difícil, cheio de ditos e teses enigmáticas, que faz
afirmações ambíguas acerca do problema do mal, a partir de um dos
versículos do Velho Testamento: “Do Norte irromperá o mal
sobre todos os habitantes da terra” (Jeremias1:14– Neviim/Profetas).
Coincidentemente, Nostradamus parece ter incorporado este conceito,
porque em suas Centúrias o imprevisível sempre vem do norte:
“Aparecerá, no céu no norte, um grande cometa” (Cen.II-43) e “De
repente ergue-se no céu uma enorme chama, quando os do Norte
fizerem a sua experiência” (Cen.VI-97). Scholem também chama a atenção
para uma das características mais marcantes entre os primeiros
cabalistas que surgiram em Languedoc, na Provença: a sua postura diante
do conceito do mal e do demoníaco. Enquanto os filósofos judeus
consideravam um problema menor, para os cabalistas o mal sempre foi um
assunto dos mais sensíveis e instigantes.
7 Ciclos
Outro livro que
exerceu grande influência no misticismo judaico europeu e nos estudiosos
da Cabala foi o Sefer há-Temuná (Livro da Configuração ou da
Imagem), que surgiu na Catalunha, por volta de 1250. Entre outros temas
o texto fala de 7 ciclos cósmicos que durariam, cada um, sete mil anos,
ao fim dos quais se somariam mais mil anos, formando o 50º milênio do
Jubileu (Santificareis o 50º ano... Levítico 25.10). Cada ciclo seria
governado por um atributo diferente de Deus, resultando em períodos mais
austeros e outros menos severos.
Observa-se, ainda,
que um dos maiores mestres da astrologia na Europa Medieval, o rabino
espanhol Abraham ben Meir Ibn Ezra (1089-1167), ensinava que o sistema
astrológico de tempo se estruturava sobre 7 ciclos ou planetas (Saturno,
Vênus, Júpiter, Mercúrio, Marte, a Lua e o Sol). Cada um
influenciaria o mundo por um período de 354 anos e 4 meses, ao fim
dos quais os ciclos se repetiriam. Médico e erudito, ele viveu na
Provença quatro séculos antes do nascimento de Nostradamus, sendo o
autor de cerca de 200 livros sobre os mais variados assuntos - religião,
filosofia, astronomia, gramática hebraica e matemática -, nove deles
voltados à astrologia (o mais conhecido é o Sefer há-Olam – O
Livro do Mundo).
A freqüência do
número 7 nas páginas do Velho Testamento, número associado à própria
Criação e a símbolos, eventos e normas básicas do judaísmo, também pode
ser observada na obra de Nostradamus. Ele registra o número 7 em várias
quadras de suas Centúrias e Presságios: O cometa
brilhará por 7 dias... (Cen.II-41); O ano de 1999 e 7 meses...
(Cen. X-72); Outro que não o Papa ocupará o trono de São Pedro por 7
meses...(Cen.VIII-93); Um outro (poder) restabelecerá a monarquia
até o sétimo milênio... (Cen.I-48); Por semearem a morte, 7
países da Europa serão mortalmente feridos... (Pr. 40); A grande
cidade de 7 colunas... (Cen.I-69). Mas, é na quadra X-74, uma das
mais conhecidas e citadas, que se verifica uma clara transposição da
mística judaica quanto ao ciclo cósmico, ao ano do Jubileu e a era
messiânica (com a ressurreição dos mortos, presente na oração judaica
diária da Amidá/18 bênçãos). Os versos da quadra dizem: “No
ano do grande sétimo número completado, aparecerá nesta ocasião os jogos
da hecatombe, não longe da idade do grande milênio, quando os mortos
sairão de suas tumbas”.
A Origem
O rabino Chaim
Zukerwar – nascido no Uruguai e que estudou a Cabala em seminários
rabínicos em Jerusalém – lembra que o número 7 costuma indicar os
ciclos e os processos que abrangem a dobradinha tempo e espaço,
aparecendo nos textos judaicos de tradição oral e escrita. Em sua obra
“As 3 dimensões da Kabalá”, ele dá alguns exemplos: “Em seis dias
Deus criou os céus e a terra, e no sétimo dia descansou (Shabat/sábado);
Sete dias formam uma semana; durante 7 dias é celebrada a festa de
Pessach (Páscoa judaica/libertação dos judeus no Egito); 7 semanas
depois é Shavuot (Outorga da Lei-Torá); Sete meses depois de Pessach é
Sucot (Festa das Cabanas)” etc. Outro dado interessante é que o ano
novo judaico começa no sétimo mês bíblico (1º de Tishrei/Libra), dia de
Rosh Hashaná (aniversário da criação do mundo) e termina
354 dias depois, em 29 de Elul/Virgem.
Calendário hebraico
Além dos números,
as datas incluídas em seus versos também instigam e alimentam o mito
Nostradamus. Benazra assinala que na carta ao “Rei da França”, em 1558,
Nostradamus é muito preciso quando escreve que as suas previsões vão de
14 de março de 1557 até o início do 7º milênio, em... 3797 (?), cobrindo
um período de 2240 anos. Para o pesquisador, o vidente utilizou-se do
calendário hebraico em seu enigma cronológico: o ano de 1557
corresponderia ao ano hebreu de 5317; o ano de 2001 equivaleria ao 5761;
e 2240 ao ano 6000 do calendário judaico, ou seja, às portas do 7º
milênio. Logo, as datas de “julho de 1999” ou “11 de
setembro de 2001”, que provocaram acaloradas discussões e
controvérsias, estariam inseridas em uma contagem de tempo alheia
ao período da chamada Era Comum, já que Nostradamus, como cabalista, não
contabilizaria o fim dos dias pelo Novo Testamento.
Uma curiosidade: a
médium mais famosa da Inglaterra, Doris Collins, de 89 anos, conhecida
por reivindicar para si poderes de clarividência e de cura, declarou que
conseguiu manter contato com Nostradamus uma única vez. Ele lhe teria
dito que, embora tivesse mudado de religião, isso não modificaria o
fato real de que nascera judeu.
Sorte e sina
No livro “Universo
Kabbalístico”, o inglês Z’ev ben Shimon Halevi – escritor e professor de
Cabala - afirma que a astrologia sempre esteve dentro da Cabala
judaica, apesar de muitos negarem o fato. “Até no Talmud há muita
discussão sobre a influência do macrocosmo sobre o homem: por exemplo,
um rabino chamado Hanina argumentava que os planetas determinavam a sina
de uma pessoa, e um outro rabino, conhecido como Rava, declarava que a
sorte de um indivíduo não dependeria de merecimento, mas do seu planeta
regente”. Halevi assinala que nesses debates com rabinos contrários à
idéia do poder atuante dos astros, ninguém negava a validade das
influências celestiais, apenas o seu “governo” sobre Israel. “A palavra
mazalot, que significa zodíaco, tem a mesma raiz de mazal
(fortuna), e até hoje os judeus usam a expressão mazal tov (boa
sorte) nas festas e celebrações, sem se darem conta de que a palavra
trata de influências astrológicas”, explica o professor. E mais: o
número 77 é o valor da palavra hebraica mazal!
Retorno a Israel
Outro tema abordado
por Nostradamaus em suas Centúrias diz respeito ao retorno do
povo judeu à terra de seus antepassados. O pesquisador Robert Benazra
lembra que na quadra III-97 o astrólogo escreveu: “A nova lei ocupará a
nova terra, em direção a Síria, Judéia e Palestina, o grande império
bárbaro desabará...”. O conteúdo dos versos está em sintonia com as
profecias de Zacarias (Eu farei chegar o meu povo e ele permanecerá no
centro de Jerusalém – VIII.8) e de Isaías (Nesse dia os sobreviventes de
Israel irão voltar- X.20; O Eterno juntará os exilados de Israel e
reunirá os dispersos de Judá, dos quatro cantos do mundo- XI.12).
Estudioso da
mística judaica, Nostradamus tinha conhecimento de que, segundo o Talmud,
a era dos “Verdadeiros Profetas” tinha chegado ao fim na primeira
geração do Segundo Templo (515 antes da Era Comum). Mas, provavelmente,
também teria lido “O Guia dos Perplexos”, escrito em 1190 por
Maimônides. Na obra, o grande médico e filósofo judeu, nascido na
Espanha, expõe os Treze Princípios da Fé e fala sobre a crença de que
“Deus faz os seres humanos profetizarem”. Porém, o espírito da
verdadeira profecia só retornaria ao povo judeu um pouco antes da Era
Messiânica, quando da vivificação dos mortos e da total revelação da
Torá (o conteúdo dos espaços em branco, entre as palavras, seriam dados
a conhecer). Até lá, os Sábios levariam adiante a Tradição e, apesar da
inspiração, conhecimento, visões e previsões que poderiam ser dotados,
a percepção que se formou foi a de que a cada geração que se sucedia, o
nível espiritual tornava-se inferior à anterior, resultando em uma frase
muito usada pelos mestres aos seus discípulos: “Se nossos predecessores
foram como anjos, nós somos apenas homens”.
Investindo nessa
máxima, Nostradamus utilizou com sucesso a sua ancestralidade e os
conhecimentos do hebraico e da Cabala - ainda uma fonte oculta e
incompreensível para a maioria das pessoas – para ditar as suas
herméticas previsões. O efeito paradoxal e confuso de seus versos
funcionou a seu favor e a sua obra tem se mostrado um campo aberto a
exercícios de adivinhações e a teorias relacionadas com o fim do mundo.
(31 de março/2007)
CooJornal
no 522