Sheila Sacks
The Spirit
e outras histórias
Os aficionados de
histórias em quadrinhos que se preparem: em 2007, o justiceiro mascarado
The Spirit, dos anos 40, deve voltar
à ativa, desta vez nas telas dos cinemas. O genial escritor e desenhista
Frank Miller, diretor do cultuado Sin City (Cidade do Pecado), e
a turma da produção do filme Batman Begins já embarcaram rumo à
lendária Central City, a cidade dos sonhos, desilusões, dramas,
crimes e situações bizarras, engendrada pela imaginação do mais
respeitado e premiado cartunista de todos os tempos: o norte-americano
de origem judaica, Will Eisner. Nesse universo noir de
jogos de sombras, ângulos insólitos e planos incomuns, vive o
investigador da polícia Denny Colt, dado como morto e que faz do combate
ao crime a sua bandeira de luta. De terno, gravata, chapéu, luvas e
máscara, ele se transforma em The Spirit, o mocinho
diferente, mais humano e contraditório, sem superpoderes, com dúvidas e
sujeito a falhas.
À parte as histórias
policiais nada convencionais, The Spirit inovou os
comics utilizando-se de inventivos recursos narrativos, de
enquadramentos inesperados de imagens, e lançando mão de primeiros
planos para destacar um detalhe. Essa nova linguagem gráfica, quase
cinematográfica, introduzida por Eisner, angariou um exército de 5
milhões de ávidos leitores semanais, somente nos Estados Unidos. As
tirinhas, iniciadas em 1940, foram publicadas até 1952, mas seus
enredos e ilustrações, utilizando narrativas paralelas e desenhos
expressionistas, romperam com as técnicas tradicionais, marcando um novo
capítulo no desenvolvimento da arte do cartoon.
Considerado por
especialistas do gênero o mestre das histórias em quadrinhos de
todos os tempos, William Erwin Eisner nasceu em 1917, no
bairro nova-iorquino do Brooklin. Era filho de imigrantes judeus muito
pobres, e quando criança trabalhava vendendo jornais nas ruas para
completar a renda familiar. Foi esse o seu primeiro contato com as
histórias em quadrinhos, cujas ilustrações o encantavam e com as quais
desenvolveu um profundo amor pelo desenho gráfico. Já aos oito anos
resolveu se dedicar ao desenho, apesar da oposição da mãe. Além do herói
Spirit, Eisner também foi o criador de Sheena, a Rainha da
Selva, que virou série de TV (1955) e filme (1984).
Mas, apesar do enorme sucesso com The Spirit, Will
Eisner dá uma guinada em sua vida e em sua arte, surpreendendo fãs e
seguidores. Depois de realizar trabalhos de propaganda e de publicidade,
e também de adaptação para as HQs de obras clássicas, como Don Quixote e
Moby Dick, ele edita, em 1978, uma publicação ilustrada, com temas
sérios e para leitores adultos, classificada pelo próprio autor de
graphic novel (histórias longas, impressas em papel especial e
publicadas em formato de álbum). A novidade provoca uma revolução no
mundo dos comics. O trabalho Contrato Com Deus e Outras
Histórias mostra a vida de pessoas comuns e fala dos dramas do
dia-a-dia de sua Nova York natal. Sem limitação de páginas, com temática
e desenho livres de qualquer forma, os romances gráficos se tornam
populares e conquistam seguidores entusiastas. As aventuras
protagonizadas por heróis são deixadas para trás e os habitantes
anônimos da Big Apple – muitos deles imigrantes e judeus como os
pais de Eisner – assumem os papéis principais no pincel do artista.
Combinando ficção com histórias reais, Eisner cria relatos intensos e
dramáticos, com destaque para a temática judaica. Os anos passados nos
bairros do Brooklin e do Bronx são retratados em uma série de trabalhos
que incluem O Sonhador, O Edifício e No Coração da
Tempestade. Este último, mostra a sua infância e adolescência.
Segundo Eisner, a linha central dessa graphic novel é o racismo.
“O livro se inicia no trem, quando sou convocado para a guerra. Pela
janela visualizo cenas que me lembram as histórias pelas quais eu
passei, dentre elas minha primeira experiência com o racismo.”
Em 1983, para comemorar os 15 anos da publicação de
Contrato com Deus, é lançada uma edição especial da obra, em
ídiche. No Brasil, o universo de Eisner ganha a cena teatral, com as
peças New York, em Curitiba (1990), Pessoas Invisíveis, no
Rio (2002) e Avenida Dropsie, em São Paulo (2005). Ainda no
Brasil, a produtora Marisa Furtado realiza um documentário sobre Eisner
(1999), o primeiro sobre a carreira do artista.
Suas duas últimas obras, Fagin,o Judeu e The Plot
abordam temas espinhosos. A primeira é uma revisão histórica
de uma figura mal retratada por Charles Dickens, em seu livro Oliver
Twist. A visão estereotipada do personagem serviu para disseminar o
preconceito entre os leitores do autor inglês e Eisner apresenta a sua
visão sobre o assunto. A segunda trata da verdadeira origem de um
documento forjado por autoridades russas, em 1903, conhecido como Os
Protocolos dos Sábios de Sião. A farsa foi descoberta em 1921 e
revelou que o texto dos Protocolos foi extraído de uma sátira
política francesa escrita por Maurice Joly, em 1864, intitulada O
Diálogo no Inferno. O texto descrevia uma fictícia discussão de
Maquiavel e Montesquieu para um plano de conquista por Napoleão III,
cujo nome foi substituído por “os judeus”.
The Plot
foi lançado nos Estados Unidos em maio de 2005, alguns
meses depois do falecimento de Eisner. No Brasil, a editora paulista
Companhia das Letras publicou a versão brasileira (O Complô), em
novembro de 2006. Em entrevista ao New York Times, em 2004,
Eisner falou deste trabalho: “Acabo de concluir e estou editando uma
novela gráfica de caráter polêmico. Trata-se da verdadeira história da
origem de uma das maiores e mais infames fraudes do mundo, os Protocolos
de Sião”. Justificando seu interesse pelo tema, Eisner contou que
buscou no passado uma forma de enfocar o anti-semitismo que continua
sendo uma questão atual. Eu estava na Internet e descobri uma página
promovendo “os Protocolos” para leitores do Oriente Médio. Fiquei
chocado em descobrir que muita gente ainda acredita que a história é
real e fiquei perturbado quando vi a quantidade de sites que divulgam
essas mentiras para os muçulmanos. Concluí que algo precisava ser feito.
Will Eisner tinha 87
anos quando faleceu em 3 de janeiro de 2005. Pioneiro dos comics
de adultos e criador do termo arte seqüencial que deu novo
status ao gênero, ele deixou seguidores respeitados, como Frank
Miller (Batman, o Cavaleiro das Trevas e Sin City ) e Alan Moore (Watchmen).
Considerado o Leonardo da Vinci dos quadrinhos pela
revista Civilization, editada pelo Congresso americano, o artista
emprestou o seu nome para o mais importante prêmio de quadrinhos do
mundo – o Eisner Award . O jornal The Washington Post, ao
descrever a trajetória do cartunista, sublinhou que Eisner fez da
luta contra a intolerância uma forma de arte. Aqui no Brasil,
Maurício de Souza, criador dos personagens Mônica e Cebolinha,
lamentou a perda do amigo, que esteve várias vezes no Brasil :
Foi como se eu tivesse perdido outro pai. Ele era o meu ídolo,
o meu guru.
A genialidade da arte
de Eisner – que jamais excluiu a sua identidade judaica e que não a
manteve restrita às fronteiras tribais dos fãs dos comics
- também foi devidamente reconhecida pela prestigiada Nacional
Foundation for Jewish Culture, instituição americana fundada em 1960
para promover e preservar a cultura judaica. Em 2002, a entidade
outorgou ao artista o prêmio máximo pelo conjunto de sua obra.
(24 de fevereiro/2007)
CooJornal
no 517