Ronaldo Werneck
Nunca mais 20 anos na Bahia
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Terrível é saber que nunca mais terei vinte anos nem o corpo intacto como na
Bahia de 64. Vinte anos, eu pleno e pronto para todos os prazeres, tabálcoois
& tabarizes. Leia-se cigarro, cerveja & Tabariz: a diabólica boate daquela
ladeira por trás do Cine Guarany, aquela ali que o Jorge Amado vai retomar
mais tarde — o “Novo Tabariz” de seus futuros romances. Tabariz era sinônimo
de “vadiar”, como fazia o Vadinho da Dona Flor. Vão-se as virtudes vem a vida,
varal de vícios. A Bahia, pelo menos a “minha” Bahia, cheirava a acarajé &
sexo, exatamente como Maria Bethânia diria certa vez da lambreta, aquele
marisco que a gente entornava com a cerveja da madrugada na Ladeira do
Pelourinho: “dá um tesão dos diabos!”. Difícil conciliar futebol e farra. E,
antes de qualquer coisa, em 64, como ainda hoje, a Bahia já era uma farra só,
imensa e permanente.
“Temos que dormir pelo menos umas quatro horas por
noite, Ronaldo. É preciso conservar o corpo pras mulheres”. Sábias essas
palavras de Antônio, da jovem turma do cinema baiano dos anos 60, o pessoal
com quem eu andava na época. O Antônio que nós chamávamos de “Antônio das
Mortes”, brincando com o filme do Glauber. O nosso Antônio das Mortes disse
sua histórica frase no exato momento em que o crítico Alberto Silva adentrava
a Cantina da Lua Cheia, a cara idem, em plena madrugada do Terreiro de Jesus.
Há três noites/dias sem dormir, Alberto parecia um zumbi, com uns bons cinco
quilos a menos que seu normal, que já não era muito, ele que até hoje conserva
sua magreza baiana e bastante. Nosso crítico predileto encostou-se solene
ao balcão do botequim, pediu a clássica batida de limão, e disse que vinha de
um aniversário de criança, onde subira numa cadeira e fizera um veemente
discurso contra os milicos que tomaram o poder depois da quartelada de abril.
Um espanto, o Alberto. Sóbrio, sempre foi cordato e simpaticíssimo. Bêbado, um
revolucionário romântico e, por isso mesmo, eterno. Lembro de uma outra
madrugada baiana, logo no início daquele abril de 64, dia 2, talvez dia 3, nós
dois voltando pra casa: eu e Alberto trôpegos ali pela Rua Chile, vizinhanças
do Elevador Lacerda. No Centro da Bahia, o sol já ensolarando todas as cores
dia adentro – vermelho-amarelo-azul-verde-azul – lá pelas bandas do mar, por
trás do Forte de São Marcelo. Vício de jornalistas, mesmo bêbados
compramos nosso jornal. Continuamos a andar, quer dizer, a tropegar, quando
Alberto começa a gritar as manchetes do jornal que lia: “Milicos não duram
muito!”. “Jango resiste no Sul!”. “Brizolla pronto para derrubar a
quartelada!”. Os baianos que iam pro trabalho àquela hora, quer dizer, uns
dois ou três, os baianos, aqueles entes manemolentes, voltavam-se
estarrecidos, não acreditando, mas querendo acreditar, nas manchetes
inventadas pelo Alberto. Tomamos nosso ônibus rindo muito, a alma lavada. Que
maravilha! Melhor, que coisa mais porreta, como dizem os bons baianos.
Realmente, Antônio das Mortes tinha razão: a gente precisa dormir pelo menos
umas boas quatro horas (aliás, nem carece de quatro horas: dormir com as
“boas” já basta) antes de se aventurar em qualquer aniversário de criança.
Pois é, como podem perceber, era preciso dormir bem mais do que isso pra se
ficar sob as traves, à espera dos intermináveis tirambaços dos baianos de
todas as estirpes e que tentavam me estirpar a qualquer custo da posição de
guarda-valas, onde aliás, estava eu perenemente metido – nas invioláveis valas
da noite em vão. Era muita noite pra pouco dia: não havia tempo pro futebol na
Bahia. Mesmo assim, o time da AABB, comigo sob as traves, ganhou a grande
maioria das partidas do início do campeonato e estávamos inclusive seriamente
cotados para ir a São Paulo representar a Bahia na disputa do Torneio de
Futebol de Salão Bancário. Mas pode um jovem goleiro resistir aos acenos da
noite? Depois eu conto.
Jornal Olé nº 17 16 a 31/04 de 1998
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
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