Ronaldo Werneck
Aquele cheiro de saudade
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Visto assim em primeiro plano, quase em close dentro desta fotografia,
mandando brasa numa valsa diabólica durante as bodas de ouro de sua sobrinha,
a figura do grande Seu Hisbelo (oitenta e um anos neste dezembro) tem um quê
de nostálgica, qualquer coisa como Arturo de Córdoba enlaçando Libertad
Lamarque numa velha produção da Pelmex, possivelmente Bodas de Ouro.
A foto,
saída dos arquivos implacáveis da rua Dr. Sobral, remete de imediato ao bailes
da velha Cataguases, qualquer coisa perdida entre o Social e o Clube do Remo,
de onde saí certa madrugada, após ter sido recusado na chamada “contradança”
por uma antiga paquera, chutando tudo que encontrava pela frente, fulo de
raiva. Lembro que ao atravessar a ponte prometi solenemente ao velho e amado
rio Pomba jamais convidar alguém para dançar. Estava encerrada ali minha
carreira de bailarino, para gáudio das meninas de Cataguases, que deram
pulinhos de alegria, com seus delicados pezinhos finalmente livres das patas
do poeta.
“Mas isso faz muito tempo/ sobre o pátio iluminado”, como já
dizia a Gal naquela canção de que eu gosto tanto, do Duda & Macalé. Não. Não
faz muito tempo. Nem parece que foi ontem. Foi hoje mesmo. Imaginem vocês que
sábado agora, “o próximo passado”, dia 17, não sei como acabei dando com os
costados no Clube Social, levado por meu amigo Zebrão. Baile de formatura da
Fafic. Absolutamente imperdível.
Adentrando o salão, deparo com uma cena
inacreditável: Seu Tute & Dona Lilia deslizavam, como se flutuassem ao som do
jazz-band de Além Paraíba. Inspirados pelo casal, já bailavam seu filho Célio
& Ana Maria, Moisés Moura Britto & Co e, pasmem!, até o Frade & Maria Helena
já estavam de repente mandando sua brasa no salão, cena que absolutamente o
Henrique não poderia ter perdido. O entusiasmo foi num crescendo tal que, de
repente, quando a orquestra atacou de New York, New York, o Chico Filho não
resistiu e rodopiou maravilhoso com Aninha pelo salão, o mesmo salão onde eu
pisava os pés da Marina Lourenço há vinte e muitos anos atrás, não acertando
nunca o passo com a melodia do Waldir Calmon. Ou seria com o Waldyr Ferreira &
seu Drink no Rio?
Pois é, ‘é aquele cheiro de saudade/ que me traz você/ a
cada instante”. Inacreditável que o garçom era o mesmo, o velho Mosquito do
Clube Social. Quase pedi uma cuba-libre e saí dançando ao som de “tomo um
banho de lua” que a orquestra atacava bravamente. Mas, promessa é promessa:
resisti estoicamente. À cuba-libre e à dança. Mergulhei nos meus drinques
finos (tônica, guaraná & gelo) e na fumaça não tanto de meus cigarros,
sentindo-me meio bestificado, atônito, como se o tempo tivesse de repente
saltado de dentro de uma fotografia em sépia, possivelmente batida pela Eva
Comello, e devidamente retocada a cores, como só ela, a nossa atriz, a Eva
Nil, sabia fazer. Acendo outro cigarro e lembro novamente de papai, pois Seu
Hisbelo adora aquela música, como é mesmo?, “fumando espero, aquela que mais
quero”. Pois é, fumando espero. O quê? Que o tempo volte? Mas eu não sou
Proust e não me lembro de nenhuma madeleine. No máximo, o cheiro forte e
delicioso do pão da padaria Cabral nas madrugadas pós-bailes em Cataguases.
Não sobrou nada.
Nada, como diz Francisco Marcelo Cabral em seu Inexílio,
ele sim, o Chiquinho Cabral, meu poeta de cabeceira. Imaginem vocês que não
consegui sequer ser o melhor poeta de minha rua. Também, concorrer com o
Chiquinho Cabral não é fácil. Vejam o que diz o melhor poeta da rua Dr.
Sobral, o nosso melhor poeta: “nada, nem as tuas noites de gelatina e gosma/ a
me ordenhar da espontânea vazante/ nada, nem a esquecida artesania do pão,/ na
padaria onde cresci ouvindo as correias que estalavam/ em ritmo de redondilha,
transmitindo movimento/ dos motores para as máquinas/ e impondo um metro curto
aos meus poemas”.
Ainda ontem estive filmando com o Washington Magalhães e
o Luiz Thadeu, um jovem ator de Juiz de Fora, alguns takes sobre Cataguases em
cima do Inexílio do Chiquinho Cabral. Uma das seqüências foi rodada no
cemitério, entrecortada por planos gerais da cidade, numa homenagem aos
rapazes da Verde. Ainda não vi o resultado, mas confio muito na trilha sonora
que colocamos, do Nino Rota, e principalmente no texto primoroso do meu poeta,
cujo fragmento transcrevo a seguir.
“Nada, Cataguases, nem a tua
indiferença ou desprezo/ pelos teus poetas e teus loucos, únicos/ que te
conferem a glória de não seres/ como outra qualquer um simples mercado/ mas
uma cidade, oh sim, uma cidade/ com valores conversíveis à moeda aguada/ que
os ricos represam o que os corrompe/ enquanto os rapazes da Verde não faziam
versos/ e contavam poemas-piada de que ninguém ria/ (é deles que todos riam)/
soavam flautas em cavatinas nas salas endomingadas/ e o Fusco usava gravata
plastrom,/ Francisco Inácio se apertava num fato de elegante talho carioca,/
Enrique suspirava seus símbolos, ancestrais,/ Guilhermino ensaiava o concreto
em sua arte/ sutil pedra porosa de Antares/ e Ascânio morria de riqueza
interior e tísica,/ bravos rapazes, de uma cidade que valsava/ ou ia ao cinema
ver os movietones/ e eva nihil – rápida supernova e puro mito;/ Lina ainda não
tinha nascido, nem eu, nem Celina/ e quando os descobrimos/ o rádio tocava
alto e sabíamos/ bastante francês para ler e cantar/ e fazíamos de novo
versos/ enquanto os domingos se enchiam de samba-canção/ e ninguém nos lia;/
quando a televisão chegou, visual, sincrônica, não conceitual/ Joaquim Branco
acordou, Ronaldo, Plínio, Pedro, Aquiles acordaram/ Paulo Martins despertou, o
Moura abriu o olho,/ tocaram rock nos festivais/ reinventaram Dada/ e cuidaram
de montar o poema como um carro, um eletrodoméstico/ para ser consumito/
(enquanto a cidade viajava para fora a fazer turismo/ e pouco se importava,
outra vez, com todos nós)”. É isso aí, como diz o Chiquinho, fechando o
seu poema: “nada nada nada/ cada/ fala/ falo/ faro/ furo/ muro/ mudo/ tudo
tudo tudo/ ... NADA/ CATAGUASES/ NADA ME FAZ/ TE AMAR/ AMAR MENOS”.
Bubbaloo 10 Jornal Cataguases/ 25.12.88
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
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