Ronaldo Werneck
TRÊS QUARTOS DE MELANCOLIA
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Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais... mais
outra... enfim dezenas De pombas vão-se dos pombais, apenas Raia
sanguínea e fresca a madrugada
É dia claro quando chego ao
hotel na Paraíba. Venho da Cidade do Cinema montada na Usina Cultural Saelpa,
de João Pessoa. Mais uma noite em (preto e) branco a digitar e editar textos
para o jornal eletrônico do Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa,
o “Cineport na Tela”. Nove e meia da matina e caio na cama, exausto de lutar
com palavras noite aforadentro. Ligo a tevê só pra ver. Pra ver se durmo.
Mas minha atenção é despertada por um documentário finlandês num canal a cabo,
“3 Quartos de Melancolia”, realizado em 2004 por Pirjo Honkasalo (Helsinque,
1947), responsável pela direção, câmera e edição do filme. Tomo de meu
noteboook e anoto com minha caneta Cineport.
Aqui pra
nós, o notebook é um caderno sem pauta (por isso sempre desafino)
comprado ano passado em Veneza. Tá escrito na capa Notebook, e alguém
duvida? Depois, a textura do papel é uma beleza. A Cine/pen/port
corre macia por meu Note. E anoto o que se segue em meu Book, que
fica assim mesmo como se segue, pois assim saiu e assim segue. Pois.
Um
mundo de silêncio e perplexidade. As sequelas da guerra da Chechênia vistas
pelos pequenos grandes olhos de meninos russos na Academia Militar de
Kronstadt. Parecem atores-personagens, tal a força dramática dessa pequena
gente de carne e osso e amargura. As panorâmicas, a madrugada sanguínea
(palavra certa) e fresca sobre as montanhas – tudo lembra pombas e céu
escarlate e Raimundo Correa:
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, Ruflando as asas, sacudindo as
penas, Voltam todas em bando e em revoada...
O cavalo na bruma.
Os silêncios. Os travellings verticais belíssimos. Construir um filme. Câmera
fechada sobre o silêncio. Sobre o pequeno Aslam, 11 anos, o menino estuprado
pelos soldados russos. Close em Adam, 12 anos, que perdeu o pai. Em Milana, 19
anos, estuprada aos 13. Câmera ainda em close sobre Milana, agora abraçada à
irmã Kiki, de uns dois anos. Silêncio constrangedor. Milana começa a rezar:
“Salva-me da vergonha, meu Deus, bendiga todos os órfãos, ouça minha prece,
salva-me da vergonha!”.
Também dos corações onde abotoam, Os
sonhos, um por um, céleres voam, Como voam as pombas dos pombais
A câmera em close sobre os dedos dos meninos. Dos pés, das mãos, desses
dedos de crianças que se espreguiçam num acordar para o nada. Choro matinal.
Um galo canta ao longe. Um jato risca o céu vermelho. Ao ouvir o barulho, os
“olhos estuprados” de Aslam são puro estupor, puro medo e apreensão. Silêncio.
Tudo no mais perfeito silêncio, que escorre em contraponto às notas de
rara pungência da música-tema. A banda sonora corretíssima como elemento de
tensão. Pastores e cabras. Câmera passeia em lenta panorâmica sobre montanhas
e vales, agora azulados pela semiclaridade, e vai ao encontro de pastores.
No azul da adolescência as asas soltam, Fogem... Mas aos pombais as
pombas voltam, E eles aos corações não voltam mais...
Exausto,
fecho os olhos. Mas custo a dormir, vigiado por olhares infantis que vagam
sobre o nada – e mesmo assim me questionam.
João Pessoa, 01.07.2007 in Há Controvérsias 2,
2011.
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
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