Ronaldo Werneck
Embalos de Carnaval
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Plástico, papel, pano e jornal nas
mãos dos artistas enfeitam o nosso carnaval
O samba é da Portela,
campeã do Carnaval 88 em Cataguases, escola que teve como destaque a
belíssima Renata, filha de minha amiga Helena Guimarães Peixoto, e no comando
da bateria o grande Florismar, que forma junto com Chicão, meu vereador de
cabeceira, a eterna resistência carnavalesca de Cataguases. Grande vitória da
Portela num dos melhores carnavais que a cidade já teve, um carnaval
incrivelmente ensolarado apesar de todo o temporal da semana que passou.
Faço este lead – que o Fusco, como velho jornalista, gostava de chamar de
“nariz-de-cera” – diretamente aqui da redação, enquanto o François me pede
para não falar mal de sua máquina, pois ela é a única que trabalha na
quarta-feira de cinzas. Ok, francês, você venceu. O Bubbaloo que vocês vão
ler a seguir era para ter saído no domingo de carnaval. Mas, como previ em
seu final (dos tempos?) as águas realmente rolaram. As estradas, idem, os
Correios ibidem: o texto não chegou a tempo aqui na redação. Voltou a chover.
Como diz o Ércio, que está aqui a meu lado, foi uma pausa matematicamente
carnavalesca. Mas, é isso aí, o carnaval. A nação cataguasense bem que
merecia. Inté.
Bubbaloo pré-carnavalesco
Atenção, meninada da
rua Dr. Sobral: afinem suas palhetas, passem bastante cera, lustrem bem seus
craques para que deslizem perfeitamente. Pablo está chegando aí em Cataguases
pro Carnaval e está imbatível no jogo de botões. O artista está passando as
férias comigo. Bem, “férias” é eufemismo. Na verdade, está me ajudando, e
muito, no setor de apoio básico à redação da Revista Cacex, coisas como pegar
café, apanhar revistas e jornais estrangeiros na Setor de Documentação, tirar
xerox e, até, me ajudar a fazer as legendas.
Outro dia, Pablo conseguiu
identificar, numa foto que recebi sobre a exposição aeroespacial de Hannover,
vários Phantom, Alphajet, F-5, Dorinier, F-11, Tunderbolt-II, Mirage e outras
aeronaves menos votadas que se encontravam no pátio do aeroporto de
Langenhagen, na RFA. No Banco do Brasil, o office-boy chama-se “menor
estagiário”. Pablo está conseguindo ser o “melhor estagiário”. Pelo visto,
estou passando da fase Kramer x Kramer para Pai/Patrão.
Mas
el señor Don
Pablito é também puro folclore. Almoçamos outro dia num restaurante japonês e
ele me sai com essa: “Pai, você já reparou que japonês leva uma vida de
palito? É palito pra comer, palito no cabelo, eles são o próprio paliteiro”.
Quer dizer, Pablo está saindo de uma fase perfunctória para um estágio
altamente polissêmico, metafórico. Gostaram do “quinau semântico” que dei aí
nessa frase? Isso aí, a gente “fazemos” tudo pra agradar à mediania.
Voltando do almoço no Tokyo. Depois de um sushi regado a lautas doses de
guaraná com água cristal, Pablo pede a sobremesa e reclama do marshmallow.
Não só reclama como emenda com uma receita de sua própria lavra: duas xícaras
de água, uma xícara de Karo (“atenção, pai, é glicose de milho”), duas
colheres de sopa de açúcar (“de açúcar, não de sopa”), duas claras em neve de
Kilimandjaro. Pois é, Pablo também é cultura. Pelo menos, cultura culinária.
Fomos cortar o cabelo na Verinha, minha cabeleireira de fé, irmã camarada há
mais de 15 anos. Pergunto por seu pai, que está mal, com cirrose. Verinha me
diz que o velho morreu na semana passada, que estava entornando muito, que
deixava a cachaça na geladeira (essa é “pura” novidade), que estava bebendo
quase duas garrafas por dia. Os porres do pai da Verinha eram quase
sempre muito engraçados. Lembro de ela ter me contado que na missa de sétimo
dia de sua avó, ele entrou na igreja cambaleando. Quando o padre disse
qualquer coisa como “Glória a Deus nas alturas” ele rebateu de pronto:
“Glória, não! Nair! O nome da minha mãe é Nair, pô!”. Foi um custo pra
Verinha tirar o artista do palco, quer dizer, do recinto: “Toma juízo, pai!”.
E nosso herói respondia com a voz pastosa: “Juízo, pô? Dessa eu nunca
tomei!”.
Falar em porre, fui ver Under the Volcano, o filme de John Huston
baseado no excelente romance do poeta galês Malcolm Lowry. Apesar de não
possuir o brilho, a riqueza do texto de Lowry o filme tem uma grande
interpretação de Albert Finney, ator que não via assim tão bem em cena desde
o memorável Tom Jones. É, no mínimo, impressionante a quantidade de álcool
consumida pelo personagem, um cônsul britânico perdido em Cuernavaca, na
época um mero pueblo mexicano. O cônsul, o próprio Lowry (que também morou na
localidade), demissionário da diplomacia e da vida, oscila entre tremedeiras
etílicas ao largo de problemas existenciais e da realidade brutal de um tempo
nublado pelo Popocatepelt, o vulcão de Cuernavaca (na verdade, uma metáfora
do vulcão fascista – a ação se passa no final dos anos 30, não por acaso no
Dia dos Mortos).
Como seu cônsul, Malcolm Lowry também acabou tragado pela
tequila existencial e seus vulcões. Foi meu amigo, o poeta Jair Ferreira dos
Santos, quem me apresentou à poesia de Lowry. Gostei tanto que acabei
adaptando um de seus poemas, The Search. Werneckmente falando, a coisa ficou
assim: “Não em Shakespeare, não em Dante./ Não em meio ao pó da estante:/
jamais encontrarás em qualquer livro/ a agonia que te mata e mantém vivo”.
Bem, já que a gente não encontra nos livros, vamos tentar no cinema. Indicado
pela Ulla (meus filhos estão cada vez mais doidos – o pai, idem) fui ver
Rock
Horror Show, cercado de Andréas por todos os lados: à direita, La Bogossian;
à esquerda, La Muncini. Entre a armênia (como Charles Aznavour) e a italiana
(“quase” como Henry Mancini, pelo menos no sobrenome), meu coração balança.
Aliás no Bubbaloo anterior o nome da italiana saiu truncado (é também Andréa,
sem o i, exatamente como o da Bogossian. Perdão, leitores, o Bubbaloo erra na
pronúncia, mas acerta na qualidade.
Sobre Rock Horror Show, para espanto
de La Muncini (“mà cos’è questo, siete matte?”), a platéia participa
efusivamente da projeção, tocando sinos, acendendo velas, jogando água,
abrindo guarda-chuvas & os cambaus. Olhaí, Ulla, curti horrores. A platéia é
que nem aquele gato que o papai achou na rua aqui em Copacabana (o Educado,
você se lembra?). A atriz (é a Susan Sarandon, né?) está muito bem, o filme é
ótimo, o diretor sacadíssimo. Bem, pelo menos essa foi minha impressão
durante os cinco minutos em que consegui ficar acordado.
Mas já é quase
carnaval e encontro na Banda de Ipanema o polivalente Caldeira (um dia,
jornalista; outro, cineasta; outro, como agora, sambista), que me convida pro
ensaio do Bloco de Segunda, uns malucos que desfilam toda segunda-feira de
carnaval pelas ruas de Botafogo. Imperdível. Além de tudo, o ensaio era para
escolher o samba-enredo para este carnaval, tendo como tema “Os Intocáveis”
(aqueles que nunca tocam no rádio).
Não deu outra. O Bloco de Segunda
elegeu para enredo dos Intocáveis o samba do próprio Caldeira e de seus
irmãos, os Calderetes. A coisa corre assim: “Vem da Índia/ Este exemplo de
corrupção/ Como intocável/ Por favor não me confunda/ Eu sou da massa/ Sou do
Bloco de Segunda”. No ensaio, encontro Pedro Lessa, meu amigo dos bons tempos
do Leme, que agora virou arquiteto, preocupadíssimo com a preservação do
visual de sua/nossa cidade. Pedrinho me diz que mandou uma crônica pra
Revista de Domingo do JB, tendo como título nada menos que “Do Inalienável
Direito do Cidadão Curtir a Noite”. E me dá a dica: “Pô, Ronaldo, eles
iluminaram o Pão-de-Açúcar! Veja que absurdo, não há mais espaço pra gente
ver a lua, as estrelas. Não há mais direito ao escuro. Não há mais espaço
para a noite”. Pois é, Pedrinho, só nos resta mesmo cair no samba do Bloco de
Segunda. A noite ficou pros marajás, pra corrupção que vem da Índia.
Mas
hoje já é segunda-feira, uma semana antes do Bloco sair, onze e meia da
noite. Eu e Pablo acabamos de chegar do cinema. Blade Runner é um filme
fascinante, com belíssimas sequências enquadrando uma enfumaçada Los Angeles
do século 21. Tudo lembra, e muito, as cidades góticas traçadas por Will
Eisner na década de 30 para a s aventuras de seu Spirit – o grande clássico
das histórias em quadrinhos. Uma grande curtição, não fosse a falta de ar
refrigerado no Cine Jóia.
Saímos literalmente empapados, direto prum
bravíssimo sorvete no Cirandinha, que caiu muito bem. Passamos pelo
Art-Palácio. Pablo dá uma das suas: “Não entendo por que Palácio. Aqui em
Copacabana não tem nenhum palácio”. Eu abro o quarto maço de Charm do dia,
dou uma baforada, e rebato com uma frase pré-histórica: “Pô, Pablo, tá na
cara, meu irmão. É porque o cinema é um palácio de ilusões, exatamente como
Blade Runner.
Escrevo antes do Carnaval. A folia deste ano promete, pois
as águas já começaram a rolar – pelo menos em Petrópolis: 120 mortos. Ontem,
entre as matérias do fait-divers – praia, samba, biquínis, bandas, bumbuns,
baticumbum –, o JB publicou impressionante entrevista com o Bolado (gíria da
Rocinha pra quem anda sempre aborrecido), onde o novo rei do tóxico ensina à
polícia como combater o crime e promete que o bloco da Rocinha fará um
imbatível desfile de violência neste Carnaval.
Mas, como digo num poema
que cometi anos atrás, “Chove no Rio de Janeiro/ Mas faz sol/ Nos rios de meu
coração”. Espero que em todos eles, principalmente no Pomba. Senão, vamos ter
que chegar a nado pra folia cataguasense.
Bubbaloo 4 Jornal Cataguases, 28.02.88
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
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