Ronaldo Werneck
Tribalização: Nascido para matar
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Leila Diniz, com sua cara de
sapeca, me olha brincalhona de dentro deste cartaz que tenho aqui no quarto
onde escrevo. Com sua trança de maria-chiquinha Leila está muito parecida com
a coelhinha grávida, personagem assumido por minha filha Ulla no Baile do
Havaí, aí na AABB. Ouvi muita gente dizendo: “nossa, com apenas 15 anos a Ulla
já está grávida!”. Calma, pessoal, foi apenas carnaval. Quer dizer, molecagem
mesmo. Mas, garanto, curtimos adoidado. Principalmente quando confundiram Ulla
com minha suposta namorada. Ora, ora, por quem sois... a gente não “merecemos”
tanto...
Mas foi um bom carnaval, com direito inclusive ao Cabedal e suas
poções mágicas, que desfilou com o devido destaque num dos carros da Portela,
lá das grimpas dos seus 103 anos, com o olhar absolutamente atônito para o
casal de Adão-e-Eva tropicalista que rebolava frenético à sua frente. O
carnaval de Cataguases é também tribo, tribalização de todos os instintos,
inclusive do indistinto público. Um carnaval com Florismar na bateria da
Portela, Chicão e seu bloco do “eu-sozinho” – e ainda por cima com o povo
cheirando o rapé do Cabedal – tinha mesmo que abafar. Nunca vi a Avenida tão
cheia. Não há dúvida, como a gente dizia nos bons tempos de 1958, “foi o
terceiro melhor carnaval do Brasil”. Os outros dois? Ah, deve ter sido Dona
Eusébia, Astolfo Dutra, por aí.
Bem, o carnaval acabou. Depois da
tempestade, a tempestade. Após o furor momesco, a fúria de todos os outros
deuses. O Rio está literalmente desabando. Muito triste. A Avenida Brasil está
inundada, a Lagoa transbordou, um prédio acaba de desmoronar na Abolição. Um
caos. Ou uma festa. Pelos menos, é como entendem os ladrões, que estão
cobrando mil pratas de “pedágio” para os motoristas dos carros enguiçados
debaixo do Viaduto das Forças Armadas, nas proximidades da Praça da Bandeira.
Como dizia aquele fremente locutor durante a Copa do Mundo:
Brassssssiiiiilllllllllllll!!!!!
Falar em Forças Armadas, nosso
tripresidente chama de três patetas os integrantes da junta militar que
entregou o poder a Médici em 69. É, por aí. Mas, talvez fosse melhor chamar de
quatro patetas. Cala a boca, boca! Como diz Augusto Nunes em artigo publicado
pelo Jornal do Brasil neste domingo, 21 de fevereiro, o assunto é muito sério,
muito doloroso pra ser tratado na brincadeira. Ontem, na mesma seção de
opiniões, página 11, o JB transcreve matéria de Jimmy Carter, publicada no New
York Times, onde o ex-presidente dá sua receita sobre a melhor política para
que a paz reine no Oriente Médio. Carter fala de cadeira. No final dos anos
70, ele articulou o encontro Sadat/Begin em Camp David, onde foi selada a paz
entre Egito e Israel.
No Caderno Ideias, de sábado, Zé Celso Martinez
extrai do caos de sua criatividade uma sacada dionisíaca e promete uma
montagem revolucionária para As Bacantes. Após o assassinato de seu irmão, Zé
Celso propõe uma volta à vida, e cita o célebre poema feito por Maiakovski
após o suicídio de Iessiênin: “Morrer/ nesta vida/ é fácil./ O difícil/ é a
vida/ e seu ofício”. Engraçado como o tropicalismo está de volta. Não
bastasse Zé Celso, que deflagrou o movimento no teatro — com a montagem do Rei
da Vela, como Glauber fez no cinema com Terra em Transe —, agora surge Norma
Bengell filmando o mito Pagu, musa e mulher de Oswald de Andrade, que foi o
inspirador do movimento. La Bengell foi entrevistada ontem pela TVE e reclamou
muito da seleção para o Festival de Berlim (não entrou nenhum filme
brasileiro), principalmente de um alemão que declarou ser o nosso cinema muito
caótico. “Ele precisava estudar mais a história de seu próprio país, pois foi
através do caos que a Alemanha se recuperou no pós-guerra”. Não é bem por aí,
Norminha. Certo que a criatividade venha do caos. Mas é preciso ordenar o
caos, qualquer coisa como outro tropicalista, o não menos Gilberto Gil, está
tentando fazer para se eleger prefeito de Salvador.
Como ele diz hoje, em
entrevista ao BEspecial, “sou burguês, e na verdade posso ser visto no máximo
como um representante que quer ampliar essa ressonância para abranger a
sonoridade de segmentos cada vez mais extensos da massa. Estou portanto numa
posição tolerante, de viver esse processo, de entender a qualidade eticamente
gelatinosa, pouca sólida, dessas relações, de entender num sentido zen que há
uma moral de ocasião... A grande moral não interessa, e sim a pequena moral.
Porque sei, como dizia Gandhi, que Deus é a mesma substância que move a mão do
assassino e o bisturi do cirurgião”. Com toda a sua ruibarbosidade, do alto de
sua prolixa baianidade, Gil está tentando ordenar o caos, dar um discurso
“lógico” (ou “zoo-ilógico”, como naquela sua canção?) à sua campanha. Mas, com
tudo isso, et pour cause, se baiano fosse, seria seu “eleitor-de-cabresto”.
Saio pra ver Nascido pra Matar, o excelente filme de Stanley Kubrick sobre a
Guerra do Vietnam. O filme é narrado por um marine, correspondente de guerra,
e me lembrou uma jornalista que foi minha namorada e que teve um “causo” com
um também correspondente de guerra. Na época, ela dizia pra me consolar: “Você
entende, Ronaldo, o fulano tem muito mais experiência que você. Imagina, ele
já esteve no Vietnam”. Eu sofria terrivelmente por ser um mero redator de
segundo caderno, falando sobre nada mais do que amenidades. Acabei me
“vingando” fazendo um poema sobre o Vietnam. Meus Deus, como a gente é idiota
quando ama.
Interessante que, embora rodado na América, o filme de Kubrick
é quase todo passado na base de Da Nang, posto avançado dos marines no Delta
do Mekong. E Da Nang era exatamente uma das bases de sustentação de meu poema.
Lembro de um fragmento: “entre thunderchiefs/ lazy-dogs/ entre phantoms/ em da
nang/ exclamo eu te amo/ entre bull-púbis/ buldozzers/exclamo eu te amo/ da
nang/ khe sahn/ no delta do mekong/ exclamo eu te amo/da nang/ quer sangue/
exclamo/ eu te amor-te”. Depois do cinema, janto sozinho no restaurante do
meu velho amigo Nogueira na PJ (pode me chamar de Prado Júnior), em pleno
Baixo Copa. Sozinho, mas rodeado por todos os músicos e bailarinas da noite. O
Nogueira continua o mesmo, inclusive a excelente sopa de legumes. A chuva
volta a castigar fortemente a cidade. Enquanto espero a sopa, me ocorre um
poema de Mário Faustino, que cai como uma chuva, quer dizer, como uma luva:
“Sinto que o mês presente me assassina/ O temporal ladrão rouba-me as fêmeas/
E o tempo na verdade tem domínio/ Sobre homens nus ao sul de luas curvas”.
Isso aí, os poetas, os verdadeiros poetas, têm esse insight, essa espécie de
premonição. Mas é preciso voltar à vida, back in life, “celebrar a vida”, como
diz o Zé Celso. Qualquer coisa como o correspondente de guerra no final do
filme de Kubrick: “Nasci num mundo de merda... Mas estou vivo”. Já é uma
grande coisa.
Bubbaloo 5 Jornal Cataguases/ 06.03.88
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
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