Ronaldo Werneck
1º de abril na
tropicália
|
|
Fui preso pela primeira vez na noite de 1º de abril de
1964. Salvador, Bahia. Havia passado a Semana Santa em Cataguases e chegara
naquela manhã na terra de Gil & Caetano (que ainda não existiam como
“entidades baianas” e a quem conheceria pessoalmente algum tempo depois).
Estava trabalhando há apenas dois meses no Banco do Brasil e morava no Campo
Grande, ali perto do Teatro Castro Alves, no imenso apartamento do meu amigo
Alaor Bagno & família.
Na véspera, quando o ônibus passou por Governador
Valadares, senti o prenúncio de alguma coisa não muito boa, que parecia
acontecer na cidade, em Minas, quem sabe no país. Estampidos, correrias,
boatos sobre a morte de um líder camponês: “Tão falando que balearam o Chico
Julião”. Não dormi durante o resto da viagem. Quando fui pra Cataguases, na
antevéspera da Semana Santa, meu amigo Alberto Silva, já na época um dos
melhores críticos de cinema da Bahia, levou-me à rodoviária para combinarmos
a distribuição de uns versos que eu faria para serem divulgados entre as
ligas camponesas – qualquer coisa no gênero dos poemas que Ferreira Gullar,
Vinicius de Moraes, Affonso Romano de Sant Anna, José Carlos Capinan & outros
poetas estavam “cometendo” para a Civilização Brasileira, no Rio, dentro da
série Violão de Rua.
Éramos jovens e acreditávamos piamente que a
dialética & a poesia podiam virar o mundo em “festa, trabalho e pão” como
diria mais tarde a letra de Capinan para a música de Gilberto Gil, feita para
o filme Viramundo, de Geraldo Sarno. Essas coisas, vamos dizer, “saudáveis”
que passam pela cabeça de qualquer poeta que se preze quando se tem vinte
anos e se vive num mundo extremamente injusto. Pois é, parece coisa do
passado, né?
Nem o Banco nem o Brasil abriram naquele primeiro de abril
(vale a rima). Liguei pra redação do Jornal da Bahia, mas não encontrei o
Alberto. Alaor, de ouvido no rádio, me diz que a situação está “feia” no sul
do país. Feriado compulsório, sem nada a fazer, embora preocupado, desci para
o Porto da Barra. Passei a tarde inteira e o início da noite na AABB, onde
iria assumir uma das diretorias sociais e estava articulando a fundação de um
cine-clube. A tarde não era em Itapoã, mas tinha direito a piscina, sinuca &
uísque com água de coco, pois “a burguesia também tem seus encantos”, como já
dizia o jovem filósofo baiano Emetério de Jacobina.
Lá pelas dez horas da
noite, saímos do clube – eu e meu colega Manuel dos Santos, que não era o
Mané Garrincha, mas um carioca do Méier, excelente jogador do time de futebol
de salão da AABB, onde modestamente eu atuava como atento guardião de suas
cores, aliás azul & branco, como as do meu “Operal, eterno campeão local”.
Pois é, eu também já fui goal-keeper, quer dizer, uma verdadeira “caixinha de
surpresas”. Não havia vivalma (eu disse “vivalma”? Meu Deus, que coisa mais
antiga!). Subimos a pé a ladeira da Barra, eu levando uma garrafa de uísque
debaixo do sovaco, pois na saída me lembrei que o precioso líquido estava em
falta chez Alaor.
Quando estávamos adentrando a praça do Campo Grande,
apenas a alguns metros do nosso edifício, ouvimos o ruído de um veículo vindo
na contramão pela Avenida Sete. Era uma ambulância que freou “adjunto” a nós,
como dizem os baianos. Dela saltaram três rapazes fardados, metralhadoras à
mão. Fomos jogados contra o muro: “Documentos! Mãos pra cima! Têm
autorização?” Eu não tinha documentos nem autorização (que autorização?). Só
então soube que o governador havia baixado uma ordem para toque de recolher a
partir de nove da noite. Pra toda população.
Fomos lançados dentro da
viatura, digo, da ambulância, junto com um dos soldados, sentado junto a nós,
nervoso, cara de garoto servindo exército, arma na mão, devidamente
engatilhada. Temíamos que o fuzil disparasse a cada solavanco que o veículo,
perdão, a viatura, perdão, a ambulância (Mamãe!) dava a cada buraco (nossa!),
chispando no meio da noite por sobre as pedras ancestrais das ruelas
soteropolitanas – como os baianos gostam de chamar a Bahia de Todos os
Santos, inclusive meu São Salvador, por quem clamava & implorava veemente o
poetinha. Mamãe nunca soube, muito menos o padre Solindo, como o jovem
Ronaldo rezou naquela noite!
A ambulância zunia na noite, recolhendo tudo
que encontrava: bêbados, putas, retardatários de várias estirpes, inclusive
um executivo que voltava de um possível serão: no escritório, ou na casa da
amante, nunca soubemos. Sua mulher, a própria, estava jogando a chave da
casa, que ele esquecera, quando nosso improvisado camburão deu seu stop
tradicional, com direito a ranger de freios, e nosso dileto soldadinho
saltou, arma em punho, berrando o jargão de praxe: “Tem autorização? Ah, não?
Então, entra, seu puto!”. Fomos jogados pra fora da ambulância na Praça
da Sé, onde já se encontravam todos os noctâmbulos possíveis & imaginários:
“Quem tem documentos, pra direita! Os outros, pra esquerda”. Eu estava de
bermuda, nada no bolso ou nas mãos, apenas com uma inacreditável garrafa de
uísque equilibrando-se em meu sovaco (não sei por que cargas d’água não me
tomaram, melhor: não “a tomaram”). Resolvi jogar com a sorte e optei pela
direita, pela primeira e, acredito, última vez na vida. Manoel estava
devidamente documentado, e eu não queria me separar dele. Na verdade, estava
cagando de medo. Foi minha sorte: quem estava sem os documentos foi pro Dops
e levou porrada a noite inteira (imaginem se nossos bravos soldados soubessem
que o poetinha projetava fazer versos pras ligas camponesas!...).
Nós,
“cidadãos de respeito, documentados”, fomos conduzido pro quartel de
Barbados, mais exatamente pra capela do quartel, onde, vamos dizer,
“pernoitamos”. Grande hospitalidade, a do exército baiano: deixaram o poeta
com seu uísque e ainda lhe deram a oportunidade de travar conhecimento com
uma das “365 belíssimas igrejas da capital baiana”, como mamãe dizia. Bebemos
a noite inteira, inclusive nosso executivo que, entre uma & outra talagada,
reclamava, reclamava, reclamava da grande sacanagem de ser preso exatamente
na hora do “joga a chave, meu amor”.
Fomos soltos na manhã seguinte.
Estava de ressaca e extremamente humilhado. Nunca mais fui o mesmo. A partir
dali, sucederam-se as barbaridades engendradas naquele primeiro de abril que
os milicos insistiam em chamar de 31 de março (com medo da galhofa provocada
pelo dia da mentira) e insistiam ainda em chamar de “revolução”, quando no
fundo não passava de um golpe de fundo de quintal, sujo & traiçoeiro, mais um
golpezinho ao sul do Equador, de fazer inveja a qualquer republiqueta
latino-americana. Só não esperávamos que durasse tanto. Nem que doesse tanto.
Nem que nos envelhece & envilecesse tanto.
Hoje, neste quinze de novembro
histórico – cem anos de República, vinte e nove anos após a última eleição
direta, quando votei pela primeira vez para presidente (meu Deus, como o
poetinha tá velho!) – é com espanto, temor e mesmo com certo nojo que vejo
alguns segmentos do povo brasileiro carregando a bandeira televisiva dos
fantoches embonecados produzidos pelos mesmos ditadores que massacraram o
país ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Acho que é tempo de
refletirmos, de pensarmos sobre até que ponto este quinze de novembro pode se
transformar num novo primeiro de abril. Pois é, como diria meu caro poeta
T.S. Eliot: “Abril is the cruellest month”. Isso aí.
Ah sim, a segunda
prisão foi em janeiro de 1972, em pleno terror dos anos Médici. Eu, minha
ex-mulher Adriana Monteiro (na época, grávida da Ulla), o roteirista e
cineasta Tairone Feitosa e a hoje bem-sucedida empresária Ynez Mynssen fomos
“convidados” a conhecer in loco os porões do DOI-Codi (como dói!) na Barão de
Mesquita, no Rio, onde já se encontravam meus amigos Carlos Sérgio
Bittencourt e a futura jornalista Dulce Caldeira. Fomos salvos graças a
gestões de Rodrigo Farias Lima (hoje empresário teatral no Rio, e que na
época morava conosco numa casa de vila na Rua Silveira Martins) e de Leila
Diniz, a própria. Musa de Ipanema e – por essa & outras – eterna musa do
coração do poetinha.
Voz Ativa nº 1 Cataguases, nov/89
- Comentários sobre o texto podem ser enviados, diretamente, ao
autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
Direitos Reservados É proibida
a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação eletrônico ou
impresso sem autorização do autor.
|