Ronaldo Werneck
Entubas um Bubalus?
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Tempos atrás, o poeta Ferreira Gullar
publicava aqui no Pasquim um comentário sobre “O Pequeno Dicionário Histórico
e Elucidativo de Assuntos Pouco Vulgares”, de autoria do Desembargador
Alfredo de Castro Silveira. Segundo o poeta, o livro era o maior sucesso em
Buenos Aires, devido ao completo nonsense de rigorosamente todos os verbetes.
Muito que bem. Saí de imediato pra livraria São José em busca de tão
inusitada contribuição ao nosso vernáculo, que ainda por cima possuía um
subtítulo dos mais supimpas: “Tudo nos Domínios da Literatura Abrangendo
Todos os Ramos do Saber Humano”. Ora, pois-pois, nem bem comecei a declinar o
extenso nome da preciosidade e já o balconista gritava lá pros fundos da
livraria: “Solta um Dr. Silveira!”. Pra meu espanto, o Dr. Silveira
estava/está solto e é um dos best-sellers da São José, já na 4ª edição.
Agora me chega às mãos outra raridade que nada fica a dever ao Dr.
Silveira. “Exaltação ao Búfalo” é, no mínimo, um dos livros mais malucos e
engraçados que já li, uma hilariante sucessão de chavões & frases
supostamente “poéticas”, com toda a melosidade característica de um
parnasiano de boa estirpe. Só que em lugar das veiazinhas azuis realçando o
colo da mulher amada encontra-se o Bubalus (mas pode me chamar de Búfalo,
viu?): “a tua presença nas pastagens verdes, pisoteando indiferente o macio
tapete do relvado, forma contraste brusco e pouco agradável ao ambiente de
harmonia colorida que caracteriza a natureza inteira”.
Na verdade, o
búfalo brasileiro é uma parada. Vindos da África, os bubalus acabaram dando
com os costados (e que costados!) na ilha de Marajó onde se alastraram &
cresceram de forma espantosa (são quase duas vezes maiores que o bisão
americano: mais uma vez os gringos se curvam). Os caçadores que se aventuram
a encarar o seu bubalus em Marajó levam armas com calibre idêntico ao
utilizado para elefantes. Mas, quase sempre, a vez é da caça e nossos heróis
acabam ganhando o bubalus que a Luzia perdeu na horta.
Quer dizer, no
Brasil seria outra a história de Bufalo Bill. Rima à parte, nosso amigo
estaria frito. Imaginem vocês que agora alguns criadores do Paraná estão
querendo cruzar o bubalus com algumas vaquinhas da região. Nossas amiguinhas,
nem é pra menos, estão fazendo tudo pra esconder seus encantos. Mas o bubalus
não perdoa: vai mandar sua brasa assim mesmo. E essa deverá ser realmente a
primeira f(*) selvagem da história.
Bem, após essas brilhantes
considerações, voltemos ao famigerado livro do Dr. Walter da Fonseca (palmas
para o autor!). Sob o alto patrocínio da Associação Brasileira de Criadores
de Búfalos, servimos ao indistinto público algumas fatias da preciosa
publicação. Regalem-se, que há gosto pra tudo:
“De manhã e de tarde
Deus fez então o dia sexto. O dia em que nasceste... E como os sagrados
livros não assinalam o lugar primeiro onde os teus pés pisaram a terra
virgem, o homem foi encontrar depois as marcas de tua existência na velha e
misteriosa Índia, pérola soberba engastada na península sul da Ásia. Ásia das
lendas e dos cânticos sagrados, o teu berço maior...
“De BRAMA – então
o deus supremo do universo e alma do mundo, que se comprazia em dividir os
homens em castas privilegiadas, decrescentes de categorias, até reduzí-los à
condição de párias, ou seres imundos, tu herdaste a imponência, a valentia e
a força...
“De BUDA – o iluminado, o criador do estado de nirvana,
recebeste os eflúvios da serenidade, a condição de vivência tranqüila e a
incondicional submissão ao homem, que te explora nos quatro cantos do mundo.
Assim, BÚFALO, a tua origem está envolta no emaranhado de uma filosofia de
princípios políticos-geográficos-religiosos, onde a ponta do fio desaparece
no conteúdo de idéias e de crenças...
“É negra a tua pele: O teu
mugido insinua um grito surdo de sofrimento que vai retumbar nas quebradas
das montanhas, que adentra profundamente o verde emaranhado das florestas e
que percorre ligeiro os vales dos rios, rumo ao infinito, em direção ao
imponderável, buscando alguma coisa que o homem não sabe entender e que não
procura decifrar... E tu caminhas lentamente, pesadamente, indiferente a
tudo, seguindo ao encontro do nada!...
“Búfalo! Deus, é certo, deu-te
o divino dom do raciocínio. Para e pensa! E pensando, volta os teus olhos
tristes e lânguidos para a tua terra de origem... E no fim da vida aguardarás
tranquilamente o dia em que a morte virá levar-te de volta até a origem das
origens... Aí então – BÚFALO, a tua alma que deve ser branca, muito branca,
exageradamente branca para contrastar com a negrura de tua pele, subirá pelos
espaços sem fim, rumo ao imponderável...”.
A partir daí, parece que
nosso brilhante autor entrou devidamente em pirólise, imaginando a apoteótica
subida aos céus do nosso bubalus, recebido pelos deuses do Olimpo e, como não
podia deixar de ser, pelos babalaôs dessa & e de outras plagas:
“Percorrerás primeiro os caminhos multicoloridos do arco-íris. E passarás
pela Via-Láctea, cuja faixa esbranquiçada estará inteiramente marchetada de
estrelas aurifulgentes – os vagalumes dos espaços celestiais... De um lado,
legiões de anjos e querubins, dedilhando harpas, entoarão o cântico das
Aleluias. De outro, centenas e centenas de Orixás, de Oguns, de Oxalás e de
Oxus, farão ouvir os ritmos vibrantes, ardentes e cadenciados, da envolvente
música africana...
“E ao longo dos espaços siderais a tua alma poderá ver
figuras da mitologia em aplausos à sua passagem. Lá estarão Clio, Euterpe,
Thalia, Terpsychore, Plimnia, Urânia e Calíope, deusas da história, música,
comédia, dança, poesia lírica, astronomia e eloqüência. Vênus e Eros, os
deuses do amor. E Themis, a imponente deusa da Justiça... Anjos, mitos e
orixás! Um candomblé ecumênico no vazio do tempo... E muitos personagens
bíblicos, saídos do Velho e do Novo Testamento, permanecerão postados em toda
a extensão dos caminhos, sorrindo e admirando a silhueta tênue e vaporosa da
tua alma, de contornos indefinidos.
“Até mesmo Judas – o traidor
arrependido – estará formado ao lado deles. Estarrecido como todos eles! E
tal como aconteceu no Vale do Aijalon quando Josué, sozinho, batalhou contra
cinco reis, o Sol e a Lua pararão de novo, estupefatos à passagem de tua alma
branca, exageradamente branca... Eolo, o deus do vento, estenderá a mão e
aquietará a turbulência das tempestades e a violência dos furacões, deixando
apenas em liberdade a brisa acariciante que refresca!
“E a tua alma
volátil, etérea, indefinida como todas as almas, em absoluta e perfeita
sublimação, prosseguirá indiferente, alheia a tudo, até alcançar o trono do
paciente Buda, o deus de tua terra. Nesse exato momento, quando o silêncio
for total e absoluto, um pássaro do Brasil – O Uirapuru, que o imortal
Humberto de Campos chamou de Orpheu do Seringal Tranquilo, saudará a chegada
de tua alma branca com seu cântico de ternura e de paz, místico de tradições
folclóricas, de nostalgia intensa, anunciando a chegada do fim!...”.
Daí pra frente, só restava ao nosso autor coroar o bubalus com a aura de
defensor dos fracos o oprimidos, um Búfalo Bill às avessas. E ele o faz de
modo irrepreensível, com toda a elegância de seu linguajar surrealista:
“E em estado de nirvana, lá longe, bem longe, nos incomensuráveis espaços
siderais, tu dirás ao homem civilizado que te explora: Obrigado, homem!
Obrigado por esses mesmos búfalos que continuarão pela vida afora dando tudo
de si, em troca de nada! Apenas e tão-somente motivados pelo instinto de
participar ativamente no sentido do bem-estar da humanidade inteira! Conta
comigo, homem civilizado ou inculto! Estarei sempre pronto a dar de mim em
benefício de pobres e ricos, de párias e de potentados, de reis e de plebeus,
de crentes e de ateus, de negros e de amarelos e de brancos...
“E
quando a violência impiedosa da marreta do magarefe abalar por inteiro a
estrutura óssea do meu crânio, quando a choupa decepar a minha cabeça ou o
estilete perfurar a minha medula, você – homem, ouvirá de novo e pela última
vez, a melancolia do meu mugido...”.
É isso aí: fora do búfalo não há
salvação. Agora, venha cá, meu querido Dr. Fonseca, diga só pra gente:
entubas um bubalus?
O Pasquim Rio, 06 a
12/08 de 1976.
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autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
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