Ronaldo Werneck
Alcione, Arafat et moi
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Acabo de receber email de meu mais novo “amigo
de infância”, o dramaturgo Alcione Araújo, que fez recentemente palestra das
mais porretas no Centro Cultural Humberto Mauro, dentro do ciclo “Tim-Estado
de Minas – Grandes Escritores”. Ele acaba de virar verbete do “Dicionário de
Literatura da Língua Portuguesa”, como leio na Folha de São Paulo. Publicado
há mais de 100 anos em Portugal, a nova edição do dicionário destaca que “Nem
mesmo todo Oceano, primeiro e até agora único romance de Alcione, é um livro
de profunda seriedade, que não usa a tão típica carnavalização brasileira,
não necessitando se tornar um divertimento”.
Datada de 07.10.2003, a
dedicatória que ele colocou em meu exemplar do romance diz assim: “Para o
querido Ronaldo Werneck, amigo de infância que acabei de conhecer, meu abraço
e minha admiração. Alcione Araújo”. Mas seu email não trata do romance nem da
merecida honra de ser verbete do Dicionário português. Acontece que meu amigo
andou lendo aquela crônica que publiquei aqui sobre minha aventura argelina –
“Sangue & Areia” – aquela onde fiquei à espera de Arafat e com direito a “não
dançar” com Geórgia, a bela magiar de muitos quilates, lembram-se? A fábula é
condição “sine qua” de um romance. Bom romancista que é, Alcione viajou mais
que este poeta. Confiram.
“Caríssimo Ronaldo: Uau! Achei! Então era
você a razão da minha busca! Sua crônica iluminou o mundo e me fez entender o
quiproquó do Oriente Médio. Explico. Eu passeava de braço dado com o fantasma
do Camus pelas ruas perfumadas de "Argel, la blanche" quando fui abordado por
um homem desesperado. Era um Saharaoui desorelhado, que gritava: Cadê o
Embaixador Werneck, brasileiro duma figa! Onde se meteu o seu compatriota que
me fez de besta? Perdemos a guerra porque ele nos enrolou com o dinheiro
brasileiro, que nunca veio. Cadê o homem, que traiu meu povo! Eu mato,
esfolo, esgano!
Eu não sabia o que dizer. Camus acompanhava a cena com
um silêncio distante, sugando ávido o cigarro. O homem me sacudia:
"Brasileiro é traidor! Tem que morrer! Aquele patife ignorou o grande Arafat!
Fez pouco de um prêmio Nobel! Até então, eu não conhecia o Embaixador – o que
só veio a acontecer mais tarde, quando, por acaso, conheci Cataguases, a
capital cultural do hinterland mineiro, da qual me tornei natural sem ter lá
nascido, e vivi o impacto da revelação: o Embaixador Werneck era, nada mais,
nada menos, que o Ronaldo, meu irmão de criação!
A exasperação do
desorelhado tornou-se ameaçadora. Foi preciso o Camus intervir com a tripla
autoridade, de argelino, de escritor e de morto. O homem afastou-se
praguejando contra mim, e jurando exterminar o Embaixador que, segundo ele,
iludira seu povo que acabou perdendo a guerra do deserto. Se os saharaouis
perderam a guerra, o Embaixador Werneck perdeu muito mais. Perdeu o turbante
de Arafat e as delícias de Geórgia, a húngara de cem quilates, que o deixou
para entregar-se à sanha de uma alcatéia de árabes.
Eis a terrível
conclusão: sua crônica desvelou o mistério. Você, meu caro Embaixador
Werneck, você, meu caro amigo Ronaldo, dois seres que ocupam um mesmo e
safenado corpo, você é o responsável pela tragédia do Oriente Médio! Seu
desprezo pelos árabes abalou a auto-estima daquela gente de tal maneira, que
eles não tiveram mais força interior para enfrentar os israelenses. Arafat
não é mais o que foi. Os palestinos se curvam. Dito isto, consolo-o com
uma revelação: você, apesar de toda a sua culpa histórica, de todo o seu
jornalismo e das suas bandalhas do passado, é um excelente cronista. Um
cronista menos rebuscado do que o poeta que, aliás, merece ocupar a vaga
deixada pelo Haroldo na Academia Irmãos Campos. Um grande abraço do Alcione
Araújo”. Com Licença Jornal Cataguases, 2003
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autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
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