Ronaldo Werneck
SANGUE E AREIA |
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Passei cerca de 40 dias na Argélia em 1979. Representante da Cacex na Feira
Internacional de Argel, às vezes respondia pelo stand do Brasil enquanto nosso
presidente, o Secretário do Itamaraty Antonino Gonçalves, ia a Genebra ou a
Paris para resolver alguma pendenga diplomática. Era um tempo de Leste-Oeste,
esquerda-direita, quando a guerra Ocidente-Oriente ainda era fria. Não uma
“fria” como agora. O mundo todo estava em Argel, os países exibindo em
mega-stands suas últimas conquistas tecnológicas, industriais e até mesmo
bélicas. Num daqueles dias em que presidia o stand – Antonino fora a Paris –,
surgiu o representante da Nação Saharaoui. Eu já o conhecia de vista, pois seu
stand ficara famoso na Feira por exibir filmes e equipamentos aprisionados ou
recuperados durante a guerra que os saharaouis travavam naquele exato momento
ao Sul do Marrocos, no Saara Espanhol.
Alguém disse pro saharaoui que
eu era do Banco do Brasil e ele viera me consultar sobre possíveis
financiamentos do BB às batalhas que seu povo travava no deserto. Tive que
lançar mão de toda a (pouca) diplomacia aprendida naqueles dias ao lado do
Antonino para “sair da enrascada”. Não podia simplesmente dizer não, pois isso
poderia gerar um quiproquó internacional: afinal naquela hora eu era o
presidente do stand do Brasil. Dizer “sim”, é claro, estava fora de cogitação.
Então, deixei mineiramente o nosso saharaoui em banho-maria, enquanto
aguardávamos “uma possível resposta de Brasília” – a quem eu afirmara estar
consultando via fax. “Mas a resposta”, dizia a ele, “seria demorada porque o
pedido teria que ser avaliado pela diretoria do Banco”.
Por conta
disso, o saharaoui acabou “meu amigo” – e sempre vinha puxar conversa nas
recepções que aconteciam quase todas as noites nos inúmeros stands da Feira.
Não lembro mais seu nome. Só que perdera uma orelha na guerra – e isso era
motivo de grande orgulho, exibido quase como “um troféu que faltava”. Uma
noite, durante um coquetel no stand da Áustria, eu estava dançando com
Georgia, uma húngara de cem quilates de quem ficara amigo, quando o saharaoui
me abordou. “Monsieur, amanhã Arafat chegará a Argel e daremos uma recepção em
nosso stand. Faço questão de sua presença”. Enquanto conversava com ele,
começou uma dança folclórica argelina e vários árabes cercaram Georgia no
compasso da dança. E literalmente “dancei”, pois me tomaram a nobre dama
magiar.
Georgia me acenava meio aflita, mas eu e o saharaoui nada
pudemos fazer por ela, a não ser bater palmas ao compasso da música. “Amanhã
Arafat chegará”, repetia o saharaoui – e durante toda a noite só se falou
nisso em toda a Feira e acredito que em toda “Alger la blanche”, como é
conhecida a bela capital argelina. Yasser Arafat, o líder da Autoridade
Palestina, vinha para uma conferência em Argel e era aguardado com visível
esperança por toda a nação árabe. Não o conheci, apenas o vislumbrei de
passagem durante o “coquetel saharaoui” da noite seguinte. Meu amigo chegou a
me presentear com um daqueles turbantes em preto-e-branco que marcam até hoje
sua figura, infelizmente extraviado na volta ao Brasil.
Nunca mais vi
Georgia. Nunca mais, também, me esqueci daquela noite-véspera de Arafat em
Argel. O poema a seguir tem quase vinte e cinco anos, mas é inédito. Foi feito
durante aqueles dias em Argel e o publico agora numa homenagem ao líder árabe,
Nobel da Paz em 1994, exatamente no momento em que seu poder na Autoridade
Palestina começa a perder força face às intensas pressões do governo Bush.
Parece, porque na verdade Arafat ressurge ainda hoje com todo o seu carisma
mesmo nesses dias em que anda jurado de morte. O coronelismo nordestino assoma
incólume e assume faceta internacional.
Arafat Chegará
lua
luar despenca sobre o mediterrâneo
amanhã arafat
chegará
manchas de morte marcas martelam o marrocos na branca
argel o mar – arafat chegará
– de la bière, messieurs! há no
stand austríaco rotundo coquetel – arafat chegará
teia teia de
estrela autrichienne stella artois pão scotch – arafat chegará
magia magiar requebra in the night georgia húngara star – arafat
chegará
sim é aussi agreste frenchenglish georgia seu ar de
buda-peste – arafat chegará
bleu-blue danubio broken my heart mon
coeur deserto lua lua luar – arafat chegará
luzes emprenham o ar
os cílios de georgia exalam cabochard – arafat chegará
dentro de
la nuit o tuaregue azul azul ri sem parar – arafat chegará
sob
argelinos olhos dança georgia dança sans son aãdjar – arafat chegará
árabes de mãos dadas cerco georgia cerco ar parado no ar – arafat
chegará
rien de tout sabemos do front saharaoui oui lá mes amis
– arafat chegará
a orelha não há l´ami saharaoui é mesmo de
assustar – arafat chegará
no deserto a orelha cai no front sem
lugar areia luar – arafat chegará
não ninguém ninguém mais
ninguém bebe riccard nem georgia mais há – arafat chegará
preto-branco perturba a turba o turbante instante de arar – arafat
chegará
do chão de casablanca brotam les roses–au-sable pedra pó
estelar – arafat chegará
luz de não acabar sim aujourd´hui
manhã cheia de mar oui – CHEgARAFAT!
Com Licença Jornal
Cataguases, 2003
(Revista Rio Total, CooJornal nº 1.218, 16/04/2021)
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autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
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