Ronaldo Werneck
CHILE CONTRA SUPER-HERÓIS
|
|
“E corremos para lugar nenhum/ los carabiñeros nos calcanhares/ outubro ou
nada só fogo e fumaça/ (...) asesinos asesinos ya bradam/ berram los
compañeros en las calles/ brados ya ressoam na cordillera/ ya octubre y
sangre em Santiago”. Esses são alguns versos do poema que escrevi em Santiago
do Chile em outubro de 2019, quando das “manifestaciones” que sacudiram o
país. Os chilenos tomaram as ruas manifestando-se ou combatendo por redução
das usurpações e das opressões econômicas a que estavam submetidos. Para a
pacificação, o governo Sebastian Piñera propunha um plebiscito para abril de
2020 sobre uma nova Constituinte.
O plebiscito só veio agora, no
último 25 de outubro, um ano depois das manifestações de 2019. Um dia
histórico. Os chilenos se declararam emocionados ao participar da votação que
consideraram a mais importante desde 1988. Foi mesmo emocionante ver uma foto
dos eleitores no Estádio Nacional de Santiago – que foi o centro de detenção,
torturas e assassinatos depois do golpe militar de 1973, que matou o
presidente Salvador Allende e levou ao poder o General Pinochet, um dos mais
sanguinários ditadores de que se tem notícia.
SUPER-HOMEM &
PATO DONALD
Lembrei-me então de um livro que resenhei quando
de seu lançamento brasileiro em 1978, “Super-Homem e seus amigos do peito”,
de Ariel Dorfman (escritor argentino, naturalizado chileno) e Manuel Jofré
(escritor chileno), onde os dois ensaístas examinam as histórias em
quadrinhos sob a óptica dos aparelhos ideológicos de estado. Em 1971, junto
com o belga Armand Matellard, Ariel Dorfman já havia lançado no Chile “Para
leer al Pato Donald” (”Para ler o Pato Donald, na versão brasileira publicada
pela Paz e Terra em 1977). Ali eles examinavam como os personagens de Disney
reproduziam a lógica capitalista, onde o dinheiro e a acumulação tinham papel
predominante nas relações "interpessoais" entre os personagens, e como as
histórias promoviam o imperialismo americano, ao caracterizar os povos
estrangeiros como atrasados, tribalizados, ingênuos e/ou espertalhões.
No início dos anos 1970, o Chile viveu uma experiência única na América
Latina, que não pode ser comparada nem mesmo à Cuba de Castro. Pela primeira
vez, o socialismo chegava ao poder através de eleições diretas.
A
curta trajetória de Allende no poder (1970/1973) gerou entre os intelectuais
chilenos uma série de estudos buscando trazer à tona os graves problemas – e,
de certa forma, direcionar as novas veredas que poderiam ser abertas para
imprimir mais humanidade aos destinos da América Latina.
Os chilenos
perceberam de imediato a força ideológica dos meios de comunicação, e vários
ensaios foram feitos sobre o assunto. Um deles foi o livro “Superman y sus
amigos del alma”, escrito em 1972 por Dorfman e Jofré – e publicado em Buenos
Aires, em 1974 – onde os autores procuram analisar as “tramoias ideológicas”
que se encontram por trás da aparência “naif”, da suposta ingenuidade dos
quadrinhos.
SUPER-HOMEM E O SOLDADO
“Santiago do Chile, 15 de
setembro de 1973, quatro dias após a queda e morte de Allende: de um caminhão
da FACH-Força Aérea do Chile descem soldados armados de metralhadoras” –
escreve Dorfman no prólogo do livro. “Eles cercam a tipografia Roda e começam
a arrebentar tudo o que veem pela frente: prelos, lâmpadas, fluorescentes,
aparelhos de reprodução. Enquanto a tropa entretinha-se com esse jogo, o
tenente que comandava a ação entretinha-se sozinho. Prendia, sob ameaça de
fuzilá-los, os diversos manuscritos que correspondiam aos volumes que se
preparavam nessa oficina tipográfica, sendo que alguns deles estavam a ponto
de serem publicados.
“Entre os títulos que já atingiam sua etapa final
de produção encontravam-se cinco mil exemplares da primeira edição de
“Documentos Secretos sobre a Vida Íntima de Super-Homem e seus companheiros
d´Alma”, título inicial de “Superman y sus amigos del alma”, que seria
lançado no ano seguinte em Buenos Aires”.
A ideia era mostrar dois
aspectos dos produtos culturais dos meios de comunicação de massa: uma
análise teórica (Dorfman) dos super-heróis, partindo do Zorro como figura
extrema e exemplar, e os resultados práticos de uma experiência de
transformação deste tipo de historieta durante o governo da Unidade Popular
na Editora Quimantú (Jofré). Tudo isso escrito numa linguagem de comics. Como
eles não conseguiram resgatar os manuscritos originais, a edição publicada
baseou-se nos rascunhos que a “dupla dinâmica” conseguiu salvar e que fez
passar através da Cordilheira dos Andes por uma passagem secreta.
Dorfman acrescenta em seu prefácio: “(...) É possível que eu não tenha
percebido até que ponto o fascismo já esteja semeado nas estruturas
essenciais do capitalismo, sempre pronto a fazer-se presente ao menor sinal
de ameaça de tomada do poder por parte da classe operária; ao menor sinal de
que a classe dominante se mostre incapaz de exercer sua hegemonia através de
suas próprias formas legais e democráticas. “Em todo caso, nunca
suspeitamos que o primeiro leitor de nossa obra acabaria sendo não um homem
de letras, mas justamente um homem de armas. É doloroso pensar nessa figura,
um tenente, um capitão (ou seja lá o que for), que encarregaram de revisar os
manuscritos um a um e de transmitir informações acerca dos mesmos. É
dramático, grotesco, imaginar esse soldado lendo atarefado Super-Homem e seus
Companheiros d´Alma.
“É paradoxal que ele estivesse esquadrinhando sua
própria face interior sem sabê-lo, ou ainda que nós lhe estivéssemos
explicando (longe dele) as causas ideológicas que haviam motivado sua
insurreição para pôr “ordem” na República. Isto porque este soldado não é
Super-Homem. Aí está a armadilha. É alguém que se sonha como Super-Homem, que
se sonha como Zorro. (...) De nossa parte, escrevemos este livro pensando
contribuir para um mundo onde ele não existisse”.
“O papel da
ideologia – escreve Jofré – é eliminar as contradições que os homens e o
sistema social capitalista possuem. Ela nega os seres humanos (personificando
o dinheiro); nega o social (ao mostrar os bons sempre sozinhos); nega a
humanidade (colocando o super-herói como um Messias que impõe a justiça e a
ordem convertendo-o em um ser supratemporal dotado de poderes eternos)”.
Parece com hoje, não é mesmo? Com a América trumpista de agora, Bozo-Brasil
macaqueando o (Pato) Donald, e seus messias servis, mitos derrocados. Quem
sabe, janeiro à frente, tudo isso em vias de extinção?
Leiam em meu
blog, link a seguir, a resenha que escrevi em 1978 sobre “Super-Homem e seus
amigos do peito”, acrescida de alguns tópicos extraídos do ensaio de Manuel
Jofré, que consta da segunda parte do livro.
https://ronaldowerneck.blogspot.com/.../resenha-do-livro.
- Comentários sobre o texto podem ser enviados, diretamente, ao
autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
Direitos Reservados É proibida
a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação eletrônico ou
impresso sem autorização do autor.
|