Ronaldo Werneck
ELISETE CARDOSO: 100 ANOS DA DIVA |
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Vinicius de Moraes: A grande
Elisete não comporta adjetivos. É Brasil no corpo, na ginga, no riso, no
olhar, nos maneirismos.
Chico Buarque: Elisete é a nossa cantora mais
amada. Voz de mãe, e mãe de todas as cantoras do Brasil.
No próximo dia 16 de julho a cantora Elisete Cardoso faria 100 anos. Em sua
homenagem, reproduzo a seguir o texto que escrevi para o programa da série de
shows programada pelo CCBB Rio quando de seus 90 anos.
Machado de Assis
da Seresta
Antes de surgir Magnífica, Enluarada, Noiva do
Samba-Canção, Machado de Assis da Seresta, Lady do Samba, Mulata Maior, ou
pura e eternamente Divina, a carioca Elisete Moreira Cardoso (1920-1990) não
tocou surdo nem tamborim, mas viveu em grande dificuldade. Com 15 anos já fora
balconista de charutaria, operária (“fazia sapólio cantando e, modéstia à
parte, tinha meus admiradores”), empregada de peleteria, cabeleireira e
manicure “profissional”. Mas em surdina – entre charutos, peles, sapólios,
xampus – o samba pulsava na marcação: “Eu já nasci no meio do samba, se é que
melhor não seria dizer que vim ao mundo com ele no sangue. Eu sou de São
Francisco Xavier, a primeira estação de trens elétricos junto de Mangueira,
lado da Zona Norte”.
Na noite de seus 16 anos, a moça teve convidados
ilustres – Pixinguinha, Dilermando Reis, Jacó do Bandolim – e cantou, encantou
e acabou encantada. Jacó a “descobriu” para o rádio, onde logo estreia ao lado
de seu ídolo Vicente Celestino e de nomes como Aracy de Almeida, Moreira da
Silva, Noel Rosa e Marília Batista. Foi contratada na semana seguinte. Nunca
mais charutos, xampus. Nunca mais peleterias. E claro: sapólios nunca mais.
“Eu cantava no peito”
Em 1939, já “veterana” de várias
emissoras cariocas, atua em circos, clubes e cinemas e faz com Grande Otelo o
quadro “Boneca de Piche”, sucesso absoluto ao longo dos próximos dez anos.
Torna-se taxi-girl e “crooner”, atividades de longo percurso e duração. Aos 20
anos, é uma das atrações do dancing Avenida, na Cinelândia. Dali vê a vida
girar ao som de sua voz (“Como eu cantava!”), orquestrada por cordas e metais
(“Eu cantava no peito, não precisava de microfone. Com a experiência, a
tessitura de minha voz adquiriu quase que outra característica”). É também no
dancing Avenida que sente nos calos o peso da cadência de seus “habitués”.
Com a ajuda de Ataulfo Alves, grava em 1950 seu primeiro disco, mas sem
sucesso. Nesse mesmo ano o êxito de outro disco, com “Canção de Amor”
(Chocolate/ Elano de Paula), tendo no outro lado “Complexo” (Wilson Batista),
leva Elisete à Rádio Tupi e, já em 1951, a participar do primeiro programa de
televisão realizado no Rio de Janeiro e dos filmes “Coração Materno”, de Gilda
de Abreu, e “É fogo na roupa”, de Watson Macedo. Ainda em 1951, é contratada
pela Rádio Mayrink Veiga e pela boate Vogue e grava um de seus maiores
sucessos, “Barracão” (Luís Antônio/ Oldemar Magalhães).
Ao longo dos anos
50 faz shows, filmes, televisão e, em 1957, surge seu primeiro LP, “Canções à
meia-luz com Elisete Cardoso”. A Divina ainda não despontara, mas seu nome já
era nacionalmente conhecido. De lá até 1990, ano de sua morte, Elisete lança
mais de 40 discos no Brasil e grava muitos outros, na Venezuela, Uruguai,
Portugal, Argentina, México, Japão. Uma discografia de impressionante
qualidade, aqui e ali pontilhada por interpretações definitivas de músicas que
se tornaram clássicas em sua voz.
Diva e Divina
Álbuns
como o histórico “Canção do Amor Demais”, de 1958, com composições de Tom
Jobim e Vinicius de Moraes, destacando-se faixas como “Outra vez” – onde surge
a batida em quatro por quatro do violão de João Gilberto, bossanovista e
desconcertante – e a pungente interpretação de Elisete em “Estrada Branca”,
acompanhada apenas pelo piano de Tom. Foi por algumas dessas gravações que
Elisete seria convidada, em 1964, a subir aos palcos dos Teatros Municipais,
do Rio de Janeiro e de São Paulo. E fazer, nos templos da música erudita,
interpretações consagradoras da Bachiana nº 5, de Villa-Lobos. O timbre de sua
voz, sua extensão, a dicção perfeita, tudo nela parecia ajustar-se aos cânones
do bel canto. Entre todas as nossas divas, Elisete Cardoso foi possivelmente
quem mais aproximou a interpretação de música popular dos padrões do canto
lírico. Diva e Divina.
A mesma “Estrada Branca” daquele álbum de 1964,
dedicado a Tom e Vinicius, marcou para sempre o espetáculo que realizou no
Canecão na década de 70. Uma noite no Leme, na casa de Bibi Ferreira e de meu
amigo, o dramaturgo Paulinho Pontes, assisti a um pequeno quiproquó sobre este
show. Paulinho estava escrevendo o espetáculo, que Bibi iria dirigir. Bibi
reclamou que a Elisete “quase não tinha fala nenhuma”. Paulinho rebateu:
“Deixei ela fazendo o que sabe. Cantar. Falando, é um desastre”. Bibi levantou
a voz. Paulinho tornou a rebater ainda mais alto. Eu peguei um taco e comecei
a brincar com as bolas da mesa de sinuca que havia na sala, assim como quem
não está ali. Discussão de anfitriões, a visita “nunca está ali”. Bibi acabou
convencendo Paulinho, que colocou algumas palavras a mais na fala da Divina.
Sucesso absoluto, o espetáculo ficou em cartaz por mais oito meses.
Encontrei-me com Elisete Cardoso pela primeira e última vez no final dos anos
80, num show no Teatro João Caetano, onde a Mulata Maior era acompanhada pelo
grande violonista Raphael Rabello. Fomos apresentados por Albino Pinheiro, que
dirigia o espetáculo, e Elisete presenteou-me com o LP que estava lançando.
Caprichou na dedicatória: afinal, não era à toa que a chamavam de “Machado de
Assis da Seresta”. Agora, Albino, Raphael e Elisete já se foram. Paulinho
Pontes também, e quanta saudade! Ficou o LP que a Divina me deu, um passeio
pelo melhor de nossa música, forma por excelência de perpetuar canções assim
tão extraordinárias e uma voz tão elisetemente enluarada e magnífica.
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autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
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