Ronaldo Werneck
A residência das rugas |
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Cachaça, Cartola
e Cavaquinho. Foi num bamboleio de embriaguez e delicadeza, na musicalidade e
malemolência dos compassos surgidos desse soberbo trio de criadores que o
samba-no-pé desceu da Mangueira e evoluiu pela cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro. Um tripé de bambas, onde Cachaça é Carlos, Cartola é o próprio e
Cavaquinho é naturalmente Nelson – dramático, soturno, definitivo: “Se eu for
pensar muito na vida/ morro cedo, amor./ Meu peito é forte/ nele tenho
acumulado tanta dor./ As rugas fizeram/ residência no meu rosto/ não choro pra
ninguém/ me ver sofrer de desgosto”.
O corpo emborcado, como se
aconchegasse aquele violão que acariciava de forma estranha, com o polegar e o
indicador, dando margem ao indefectível cigarro preso entre os dois próximos
dedos. O olhar entre sério e desprotegido, mesmo quando sob grossas lentes, a
pele parda-quase-cobre realçando a cabeleira branca. Nelson Cavaquinho fazia
bela figura em cena, assumindo a voz devastada por noitadas (“Ela é rouca como
a daquele americano, o Armstrong – mas eu tenho sentimento!”). Bom de boemia,
de música, de amores, ele viveu em permanente dificuldade e não viu em vida a
retribuição financeira por seu talento. “Me dê as flores em vida/ um carinho,
a mão amiga/ para aliviar meus ais./ Depois que eu me chamar saudade/ não
preciso de vaidade/ quero preces e nada mais”.
Na música, como na vida,
Nelson casou muitas vezes. Fora Guilherme de Brito, co-autor de alguns de seus
maiores sucessos, foram inumeráveis os parceiros e é sempre temerário afirmar
quem fez o quê, letra ou música – num tempo em que as parcerias eram quase
sempre por partes: “Faz aí a primeira (letra e música) que eu completo”. E
fica ainda mais difícil com Nelson, acostumado a vender com a maior desfaçatez
suas criações, como no caso daquela imortal parceria com Cartola, aquela de
“Não quero mais/ amar a ninguém./ Não fui feliz/ o destino não quis...”.
Pois
é, Nelson vendeu, mas justificou-se com Cartola: “Bem, eu vendi a ´minha´
parte, né?”. Ainda bem.
Na verdade, Nelson era maior que tudo isso. As
ideias eram sempre dele e sua marca está gravada em cada um de seus mais que
antológicos sambas. São composições que oscilam entre a morte e a amargura,
mas com tiradas de um inesperado humor – a nata da malandragem gingando em
capoeira com a vida. “Em Mangueira/ quando morre/ um poeta/ todos choram./
Vivo tranquilo/ em Mangueira porque/ sei que alguém/ há de chorar/ quando eu
morrer”.
Morto em fevereiro de 1986, Nelson Cavaquinho era mangueira,
escorpião e carioca de 1910: no próximo 28 de outubro iria completar 110 anos.
Isso se não tivesse dado mais uma daquelas escapulidas de boêmio inveterado,
daqueles que só voltam quando o carnaval se for. “Vou partir/ não sei se
voltarei/ tu não me queiras mal/ hoje é carnaval./ Partirei para bem longe/
não precisas te preocupar/ só voltarei pra casa/ quando o carnaval acabar”.
Bem, espera-se que o carnaval acabe logo. Volta pra casa, Nelson!
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autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/
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