Ronaldo Werneck
O TEXTO E SUA CONSTRUÇÃO |
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O texto, qualquer texto, não surge no papel como mágica. É antes obra que
necessita sempre de várias modificações ao tempo de sua feitura. Interessante
notar o às vezes árduo processo de montagem de um texto – os cortes, as
colagens, as várias anotações a mão num papel qualquer e até mesmo nas
laterais das páginas datilografadas, muitas vezes já na revisão final, antes
que ele seja dado como pronto. Quando temos a oportunidade de examinar um
texto em seu processo de feitura é que podemos ter a noção de todo o trabalho
de seu autor até se decidir pela sua publicação.
Epa! Eu falei em
páginas datilografadas? É isso mesmo: a era digital (como se a datilografia
também não fosse “feita a dedo”) acabou por acabar com isso tudo. A facilidade
do “corte e costura”, dos “deletes”, dos “Control C/ Control V, do “mágico
apagar de todos os erros” oferecida pelo computador, terminou com a fruição
dos exegetas ao se aprofundarem em determinado texto. Pena que não se saiba
mais como foi o processo de sua construção, o que ficou para trás, o que se
aproveitou ou não.
Exemplo por excelência disso são os originais a mão
e datilografados do célebre poema “The Waste Land”, de Eliot (St. Louis, 1888
– Londres, 1965, com inúmeras correções do próprio poeta e anotações de pé de
página feitas pelo grande poeta-crítico Ezra Pound, o maior entusiasta da obra
desde que conheceu os originais em 1921. Ainda agora, tenho aqui em minhas
mãos este belo livro, editado por Valerie Eliot, sua segunda esposa, e
publicada pela Faber & Faber em 1971: “T.S.Eliot – The Waste Land – a
facsimile & transcript of the original drafts including the annotations
of Ezra Pound”.
Anotações de Pound para Eliot e minhas para Amador
Perez
Ganhei o livro de presente ainda nos anos 1970 de meu grande amigo, o
poeta Francisco Marcelo Cabral (Cataguases, 1930 – Rio, 2014). Aliás, também
ele, Chico Cabral, possuía uma preciosidade em sua casa: os originais
datilografados de seu livro “Pedra de Sal” com anotações de pé de página do
poeta-crítico Mário Faustino e de ninguém menos que João Guimarães Rosa, de
quem fora amigo. Não sei aonde essa preciosidade foi parar após sua morte.
Mas por que estou falando disso agora? É que reencontrei entre a multidão
de meus guardados algumas pastas com os inúmeros textos (sobre artes
plásticas, música, teatro, cinema etc) que escrevi para o CCBB/Rio entre 1990
e 1995. Numa delas, o texto datilografado em 1992 (num tempo pré-computador)
para a exposição do artista Amador Perez. Junto, algumas páginas com anotações
esparsas – e a mão: “Não há margem. O desenho está solto. Dinâmica/movimento.
O que são essas imagens senão (afirmar sempre) manchas sem margem soltas pela
imaginação?”
Revendo agora o texto pronto, percebo como essas anotações
meio aleatórias foram na verdade o embrião de meu texto. O ponto de partida
para sua efetiva construção. Essas anotações que se encontram espalhadas acima
– junto com o texto pronto, que vai a seguir e algumas de suas ilustrações.
REFLEXOS PARA REFLEXÃO
O voo de Nijinski e o Retrato do Artista Quando
Jovem.
Nijinski paira pelo papel como quem voa. No proscênio, a bailarina de
Degas ensaio o salto sob a ribalta de foco esparso. Patéticos, Orfei & a fera
marcam a folha num afago feroz de cumplicidade. Sombra e luz, Madame Récamier
surge e some sobre o soumier como se levitasse. Minúsculo, o
barqueiro de Bucklin navega no vazio, oprimido por pesados blocos de uma
arquitetura volumosa, fantasmagórica. A postura clássica do cavaleiro inglês
de Stubbs é desmontada, realçando outros planos da paisagem, o cinza e o
negro, nuvem de significados. O isolamento das cores no feixe de minúsculos
quadrados, malhas superpostas às composições de grandes mestres iluministas:
as musas de Vermeer, Rembrandt, de Caravaggio, re-tratadas sob a ótica de novo
enquadramento. Os eus que são um só mergulho do inconsciente do artista,
multifacetado. Arquétipos, mimese. Ame d’or/Amador.
Mescladas ao
branco, essas imagens estão dentro de nós, manchas sem margem, tênues
contornos demarcados pela imaginação. Postais sem dono, elas sempre nos
pertenceram sem que soubéssemos. Ao decodificar sua estrutura, o artista nos
envolve numa re-visão de preciosidades perdidas. O grafite clean de Amador
Perez nos faz parceiros desses ícones dispersos na memória, totens atuais em
toda plenitude de sua pureza recuperada. Mestre do desenho, Amador é um
profissional. Um virtuose do detalhe, um perfeccionista capaz de re-criar
miniaturas com a grandiosidade impressa nos postais que toma como modelos.
Pois não lhe interessa o formato da obra de arte em si, mas o impacto de sua
reprodutibilidade transformada em paradigma.
A bailarina de Degas e o cavaleiro de Stubbs.
Princípio e fim, são pinturas esses desenhos. E representam um olhar
inesperado sobre o processo “imaginário-desenho-pintura”. Amador reverte essa
trajetória e salta da pintura para o desenho, inaugurando a autonomia de um
novo código. Fotografias de cortes inesperados, com dinâmica própria, quando
editados esses desenhos ganham ritmo de fotogramas, um movimento quase
cinematográfico, com enquadramentos e sequências cadenciadas. Malabarista,
Amador usa o lápis como pincel – e compõe com o branco esses reflexos de rara
delicadeza. O papel é seu prisma, fusão de grafite & cor, luz e reflexão.
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autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
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