Ronaldo Werneck
LINA TÂMEGA PEIXOTO: DELICADAS CAMBALHOTAS |
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Na próxima
sexta-feira, 12 de abril, Lina Tâmega Peixoto lança seu mais recente livro de
poemas, “Alinhavos do tempo”, no Centro Cultural Humberto Mauro, em
Cataguases. Na ocasião, ela fará palestra intitulada “As projeções do Barroco
na poesia de Cecília Meireles”, poeta de quem foi amiga. “Alinhavos do tempo”
já foi lançado com grande sucesso em Brasília no final de 2018 e, em janeiro
deste ano, na Casa do Brasil em Lisboa.
A lembrança do Planalto Central
leva-me a dezembro de 2017, quando de uma palestra sobre poema visual que fiz
na Biblioteca Nacional de Brasília – com a honrosa presença de Lina. O diretor
da Biblioteca, Carlos Alberto Ribeiro, a acompanhou até à porta quando ela
estava de saída. E depois se desculpou comigo por ter deixado a sala por
alguns minutos. Carlos Alberto disse então uma coisa que me deixou orgulhoso
de minha querida amiga: “Lina Tâmega é uma entidade aqui em Brasília, foi uma
honra tê-la conosco nesta noite”. Não me lembro ao certo se o que ele disse
foi mesmo “entidade”, o que parece coisa do astral, mas se não foi deve ter
sido alguma palavra afim, que Lina é mesmo “alto astral”.
Ela sempre me
maravilhou com sua escrita delicada, elegante, escrita de fino trato – quer
surgida de seus belos poemas, quer adornando um mero email do cotidiano: “Um
abraço quase de sombra que o spot constrói entre meus dedos. Lina”. “Desejo
que tudo em você fique subordinado à verticalidade e ao horizonte do mundo
físico e às operações da inteligência emocional. E permaneça com a
extraordinária lucidez de torcer as nuvens do desencanto para o clarão do
imaginário”. “Escrevo-lhe para deixar o cisco da letra, já que não houve o som
do espírito. Depois, mando palavras. Cambalhotas de abraços, Lina”.
Fala, escreve, respira poesia
Cataguasense moradora em Brasília desde os
primórdios de sua construção, a professora universitária e ensaísta Lina
Tâmega Peixoto é poeta de longo curso, e das grandes. Cidadã do mundo, na
verdade nunca se desprendeu totalmente do mundo-Cataguases, como afirma: “Ser
mineira de Cataguases é o que não me faz ser estrangeira em Brasília, é o que
me faz ser habitante de qualquer rua do mundo e nunca ser traída no meu jeito
de viver”. Sua trajetória literária inicia-se em 1949 ainda em Cataguases,
com a edição da Revista Meia-Pataca, ao lado do poeta Francisco Marcelo
Cabral, seu (e meu também) grande amigo. Em 1953, surge o primeiro livro
“Algum dia”. Somente 30 anos depois, o segundo, “Entretempo”, 1983. Mais duas
décadas sem publicar, quando em 2005 lança “Dialeto do corpo”. E, na
sequência, num só ritmo, “Água polida”, 2007; “50 poemas escolhidos pelo
autor”, 2008; “Prefácio de vida”, 2008; “Os bichos da vó”, 2008; “Entre
desertos”, 2014.
“Alinhavos do tempo”, de 2018, seu mais
recente livro, aportou aqui em casa – na Cataguases margeada pelo Rio Pomba,
tão caro a mim quanto à minha amiga poeta – em dezembro último. E, como
sempre, trazendo a sutileza das metáforas tão características até mesmo em
suas dedicatórias: “Para o querido amigo Ronaldo, os ruídos do coração que
alinhavam o abraço de admiração e amizade que leva estas palavras até você,
Lina”. A poesia assoma em cada gesto, em cada um de seus escritos – não só na
força, nos muitos punti luminosi de seus poemas, motor por excelência da
poesia, mas num ensaio, numa carta, num bilhete, numa postagem qualquer.
“Qualquer”, palavra errada: tudo nela indica extremo cuidado, emana
resplendor, halos impregnados de uma poética de grande intensidade. Lina fala,
escreve, respira poesia.
O boi (e a noite) no quadrado
Tão logo
pude, registrei por email o recebimento de “Alinhavos do tempo”: seu livro
chegou às minhas mãos já há vários dias, mas ainda não agradeci porque queria
ler antes, e ler pausadamente, como sempre degustando sua poesia, que me é
muito cara. Assim, ele andou comigo já algumas vezes durante breves e recentes
viagens. E eu viajei em suas páginas com grande prazer.
Como, por exemplo,
na narrativa para a construção do poema “O boi no quadrado”, num enquadramento
em contra plongée que remete ao cinema de Humberto Mauro. O cineasta gostava
de enquadrar bois no alto dos morros de Minas, na contraluz do sol. Em sua
infância, certamente você, Lina, nunca ouvira falar de Mauro, menos ainda
dessa sua preferência por enquadrar bois no alto dos morros. Mas o
alumbramento parece o mesmo, quase uma epifania: “Uma menina canta alguma
coisa. Súbito, entra no canto palavras sobre um boi no quadrado. A imagem
deste boi, sozinho no alto do morro, dentro de um quadrado de arame farpado,
visto há muitos anos, solta-se de sua prisão e vem ser o lamento da tristeza
retido nos ossos da solidão. Esquecida a música por instantes, fica o poema. A
percepção do mundo que me havia sido doada, foi um deslumbramento. (...) A
partir daquele momento, a poesia segurou minha mão: ´... não mexas no boi´
´não batas no boi/ que o boi quer dormir/ sonhando que a noite/ subindo das
noites/ sobe-lhe nas costas./ E lá se vão eles/ o boi e a noite/ atrás da
saudade”.
Que coisa mais perfeita – disse ainda em meu
email (sim, “papai trabalha por email”, como diz minha filha Ulla) – isso que
você escreve no “pré-prefácio”! Isso: “preciso envelhecer o presente para
recriar as coisas que se escondem dentro de mim e que resistem às delicadas
sutilezas da imaginação, no fazer-se obra literária”. E, na sequência, a
citação do poema: “Piso descalça histórias envelhecidas/ no ranger das
tábuas”.
Acho que aí está, em perfeita conjunção, uma síntese de todo o seu
livro, de toda essa delicada, sutil viagem “para dentro de seu quintal”, de
sua casa às margens do Pomba, ali onde o presente é envelhecido com a imagem
da infância-joaninha da menina aturdida com o desconcerto do mundo. (...)
“Perguntei à minha mãe como fora possível eu ter mamado na joaninha. Ela riu
muito e, me afagando a cabeça, revelou que Dona Joaninha, a mulher que morava
em frente à nossa casa, havia me amamentado por uma semana. O estranhamento de
antes se transformou no sopro da via possível de ser inventada e carreguei o
mundo para dentro de um casulo... e me transformei em herança e poesia”.
Criação do mundo e seu naufrágio
Aliás, ao falar na casa de sua
infância na rua do Pomba, no quintal que se debruça sobre o rio, e na Ponte
Velha, surge logo aquela imagem belíssima: “uma carcaça de estrela, tombada do
azul que o céu sustenta”. E falar no “seu” quintal me leva (você nos leva) ao
impacto da imagem (como se nós a víssemos enquanto lemos) daquelas formigas,
cogumelos e etc que se abrigam “para que a água do regador/ venha cabisbaixa
em sua fúria/ e não alveje a criação do mundo e seu naufrágio”. A criação do
mundo e seu naufrágio: que força têm essas palavras-imagem no universo daquela
menina que apreende o mundo a partir do quintal que é “seu mundo”. Seus poemas
respiram poesia a cada página, Lina. E nos encantam, como mágica! Sim, que
encantamento tamanho salta dessas (suas) palavras que adejam sobre “a clara,
linda, alta e fina fala” (que belo e altissonante decassílabo!).
“Aquela escrita de coisa, coração e susto/ é o encanto faminto que
entra entre falas adentro”. Drummond disse um dia ao ler um poema de “O
Centauro” do então jovem Francisco Marcelo Cabral, o nosso Cabruxa: “aqui tem
coisa”. Não é preciso que eu repita o dizer de Drummond, pois sei que sempre
vou encontrar muitas e belas “coisas” (como esses versos) em seus poemas. Mas
quando me deparo com uma pedra-de-toque como “Volteio o corpo/e a saia abre-se
em varanda” sinto que a força dessa imagem só pode me levar a dizer que aqui
tem não só “coisa”, mas um constructo de muitas e muitas belas coisas.
Ótima e mais que oportuna citação a que você faz de Walter Benjamin, aquilo da
importância de se rememorar a vida (para o poeta) ser mais importante que a
própria vida vivida. O filósofo Benjamin, pelo menos aqui, me remete de certo
modo (paradoxal, ou não?) ao lema que Mário Faustino colocava como epígrafe de
sua página “Poesia-Experiência” no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil:
“Poesia e vida minha seguirão sempre paralelas”.
Ah, sim: não posso me
esquecer de mencionar o belo estribilho de Cantiga IV: “Vou a cuidar da razão/
que do amor cuida o coração/ Ai, coitada de mim!”. Pois é, minha amiga,
conduzida pelo poema, a literatura assoma de cada palavra que você escreve.
Repito: você respira poesia – e da mais alta qualidade. Parabéns pelo novo
livro e receba daqui das margens do Pomba (infelizmente não do seu quintal), o
beijabraço mais afetuoso do admirador de sempre, Ronaldo.
Emoções da
inteligência
Sobre a poesia de Lina Tâmega Peixoto, escreve o poeta Joaquim
Branco: “Ler um livro de Lina requer tempo. Não o tempo normal que se gasta
para leituras cotidianas, mas um tempo para se concentrar mais, pois ele exige
do leitor mais do que a fruição de palavras que vão puxando palavras. Seu
discurso requer um silêncio dentre desse tempo para se buscar. (...) Fui
dirigindo meu voo por penetráveis porém surpreendentes vias – que é assim o
caminho dos bons livros – deparando ora com o recurso da metalinguagem, ora
com a difícil música de alguns versos ou com a ligeireza do pensamento”.
O
mesmo Joaquim – meu grande amigo e companheiro de aventuras literárias que já
vão para quase meio século – citado por Lina num dos e-mails que me enviou:
“Caríssimo amigo: acabei de ver o que se maravilha da vida. E estive aí no
Centro Cultural Humberto Mauro para os 90 anos da Verde e escutei você
narrando Humberto Mauro e falando no Mac. Voltarei depois para ouvir mais
coisas de seu gesto de coração de poeta e mais, pedaços de sonhos que
modificaram seu acordar em Cataguases. A cidade precisa de pessoas como você e
o Joaquim, capazes de por à superfície a memória definindo o Rio Pomba e cheia
de estrelas refazendo a luminosidade do pensamento. Não pude deixar de
registrar aqui as emoções da inteligência que tive. Esta a mais perfeita e
profunda que vive no espírito. Peço que receba meu abraço de afeto por suas
palavras e que o coloque na jarra como uma flor. Lina”.
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autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
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