Ronaldo Werneck
Dona Bibi, não respire: a senhora está morta!
|
|
Havia uma mesa de
sinuca, sempre um ótimo uísque e um papo da melhor qualidade. Era um
apartamento numa ruazinha transversal no Leme e depois um outro em Copacabana,
se não me engano na Rodolfo Dantas – isso faz muito tempo. Os donos, a atriz
Bibi Ferreira e seu marido, o dramaturgo Paulo Pontes. Era aí pelos anos 70 e
muitas e muitas vezes batíamos ponto naquele reduto de paraibanos como nosso
amigo Paulinho: o compositor e hoje maestro Marcus Vinícius de Andrade, o
cineasta Vladimir Carvalho e seu irmão, o fotógrafo e hoje também cineasta
Walter Carvalho. Às vezes, pintava também o Ipojuca, irmão de Paulinho. Entre
os não-paraibanos, estávamos eu, minha então mulher Adriana Montheiro e
naturalmente a Bibi.
A segunda montagem da peça “Brasileiro Profissão
Esperança”, escrita por Paulinho e dirigida por Bibi, com Clara Nunes e Paulo
Gracindo, estava para entrar em cartaz no ano seguinte no Canecão. Adriana,
que já trabalhara com Bibi no Programa dela na TV Tupi, seria a assessora de
imprensa do espetáculo (eu iria escrever o release). Na estreia, Chico Buarque
iria declarar: "Um trabalho inteligentíssimo de Paulo Pontes. Não é preciso
dizer nada sobre o espetáculo: é maravilhoso. Prefiro falar mais às quatro
forças deste show, diretamente: Gracindo, Clara, Bibi e Paulinho. Uma beleza”.
O papo rolava solto noite adentro, ritmado pelo tocar dos tacos nas bolas
da sinuca e o tilintar das pedras de gelo nos copos de uísque. Ali sobressaía
a voz, a inteligência de Paulinho Pontes, uma de minhas admirações de
cabeceira – e que se foi tão jovem. Meu amigo Paulinho, que escreveria pouco
depois, junto com Chico Buarque, a peça Gota D´Água, um dos grandes momentos
da história de nosso teatro, que daria a Bibi a oportunidade de interpretar o
maior papel de sua carreira: Joana, a moderna Medeia. Não por acaso, Bibi
considerava a peça “a maior obra dramatúrgica brasileira”.
A mãe que
se abruma
O país vivia os tempos brabos da ditadura de Médici, dias de
censura, torturas e muito medo e apreensão. No ano anterior, Adriana e eu
estivéramos presos no DOI-Codi. É claro que política era o prato forte de
nossos papos. Mas havia também o humor, quando Paulinho falava dos “saudáveis
loucos” da Paraíba. Loucos como o poeta Mané Caixa D´Água, que fez um poema
sobre sua mãe e nele colocou o famoso verso “e quando minha mãe se abruma”.
Indagado sobre que diabos era aquele “se abruma”, Mané não se deu por achado:
“É coisa de mãe mesmo”. Ou quando ele, Paulinho, organizou o embrião
nordestino do CPC, o Centro Popular de Cultura que seria fundado mais tarde no
Rio e do qual ele seria um dos membros mais ativos. Pois bem: numa dessas
reuniões, os estudantes ensaiavam incentivar os camponeses a se postarem em
frente ao Palácio do Governo em João Pessoa, até que o governador se dignasse
a atender determinada exigência.
Qual? Há controvérsias, afinal lá se
vão décadas e mais décadas. Importante foi como Paulinho convenceu os nobres
colegas a desistirem da ideia. Ele simplesmente perguntou o óbvio: “Onde,
diabos, os mais de cinco mil camponeses previstos na manifestação vão fazer
seus xixis & cocozinhos, já que a praça do Palácio não possui sequer um mísero
botequim?”. A vigília cívica foi abortada na hora. Além de românticas, as
revoluções, como as diarreias têm lá seus caprichos. Lembro que uma noite
toquei o interfone lá do Leme e ouvi a voz do Paulinho me dizendo que ele não
estava funcionando, mas já iam abrir. Logo depois alguém desceu e veio abrir a
porta do edifício. O hall estava meio escuro e levei um susto, pois a figura
era meio fantasmagórica, com grossos óculos escuros e uma toca ou coisa
parecida na cabeça. Achei que fosse talvez uma nova empregada. Só quando
entramos no elevador vi que era a Bibi. “Puxa, Bibi, desculpe a hora”, falei
meio sem graça por não tê-la reconhecido, “o Paulinho está acordado?”. “Que
nada, Ronaldo, é cedo ainda, a turma toda está lá em cima”.
Foi numa
noite dessas que Bibi e Paulinho entraram numa discussão acalorada sobre
Elizeth Cardoso. A pedido de Bibi, Paulinho estava escrevendo, meio a
contragosto, o texto de um espetáculo que ela iria dirigir, com Elizeth e
Baden Powell. Paulinho gritava de lá “Elizeth pode cantar muito, mas não sabe
dizer texto, não tem vocação para isso”. Bibi rebatia ainda mais alto: “Deixa
comigo, isso é problema meu, que vou dirigir o espetáculo”. E a discussão ia
esquentando enquanto eu e Waltinho Carvalho íamos dando nossas tacadas e
fingindo não escutar nada: afinal, em briga de casal, vocês sabem... Paulinho
acabou escrevendo o texto e o espetáculo estreou no Canecão ainda naquele ano
de 1973. Foi um grande, enorme sucesso.
Villa-Lobos e o quatro
“Numa das entrevistas que fiz com Abigail Izquierdo Ferreira, a pedi em
casamento. Não havia outra maneira de demonstrar minha paixão por Bibi
Ferreira” – escreveu recentemente Jô Soares em sua autobiografia. Para se ter
ideia do mundo fascinante que foi a vida de Bibi, registre-se pequeno trecho
do livro de Jô, lembranças de quando ele estava dirigindo Bibi numa peça de
Juca de Oliveira: “A dada altura das conversas sobre a montagem, eu, pensando
em usar a beleza da voz da Abigail na peça, cometi a asneira de perguntar pra
ela se ela conhecia as Bachianas brasileiras nº 5, do Villa-Lobos. Ela me
respondeu com genuína simplicidade: “Conheço, sim. Eu cantei essa música com a
Filarmônica de Londres”.
“Quando estávamos na mesa de leitura –
possegue o Jô – a Bibi, do alto de seus 85 anos, falou: ´Tem uma coisa ótima
que eu faço, que é o ´quatro´. Eu me equilibro numa perna só, formando o
número quatro. Vai dar muito certo na cena em que estou bêbada´. Eu disse pra
ela: “Abigail, você é um patrimônio, você está acima dessas coisas de
equilibrismo. Vamos deixar isso de lado´. Bibi concordou, mas um belo dia,
espetáculo rodando redondinho, ela fez o quatro e a plateia delirou. Meu
assistente de direção disse pra ela: ´Bibi, foi ótimo, mas o Jô disse pra você
não fazer o quatro, e você fez. E se alguém contar pra ele?´. Ela disse na
hora: ´Eu morro negando´”.
Poucas vezes Bibi sentava-se conosco
naquelas noites dos anos 70. Mas quando fazia contava histórias e mais
histórias de teatro, do palco e dos bastidores, o verdadeiro porquê de sua
vida. Lembro dela falando com entusiasmo de uma apresentação que tinha
assistido do Laurence Olivier (em Nova York? Em Londres?), a maneira de ele
ganhar o público com um gesto, uma alternância vocal. E também de casos
hilários que presenciou em sua longa trajetória teatral.
Como numa
apresentação em Portugal, quando um dos atores (um português do elenco) tinha
que bater numa porta cênica, segundo a marcação. E o gajo não fez por menos:
esmurrou com tal força que o cenário veio abaixo. E também abaixo veio o
público de tanto rir. Ou numa apresentação de sua companhia numa cidade do
interior do Brasil (ela não mais se lembrava qual). Como de costume, a
companhia chegava na cidade e “arregimentava” algumas pessoas para
“interpretarem” papeis absolutamente secundários nos espetáculos, quase sempre
sem fala. Uma forma de economizar nas viagens, levando menos pessoal e também
de “fazer um agrado” no povo das cidades onde as peças eram encenadas.
Muito bem, a cena era a seguinte, conforme a rubrica: Bibi, que fazia uma
vetusta senhora, encontra-se sentada à mesa e pergunta pelo chá. O “garçom”
entra, serve o chá e sai de cena sem proferir uma palavra. Só que o “artista”
da cidade entrou em cena já falando e falando sempre enquanto caminhava:
“Assim que a senhora pede o chá o garçom entre no palco e caminha em direção a
ela, sem olhar para o público por um momento sequer. Serve o chá e sai da
mesma forma, sem nada falar e sem se virar sequer por um minuto para a
plateia”. Quer dizer, o sujeito não ficou satisfeito de não ter “voz na peça”
(imagina, na frente de todos os amigos da cidade!) e se soltou falando alto e
bom som o texto da rubrica. Claro que esse foi o momento “maior” do
espetáculo, com o público caindo literalmente na risada.
Dona Bibi, a
senhora está morta!
Vi Bibi em cena anos depois em Gota d´Água, que
assisti várias vezes, a convite de meu amigo Luiz Linhares, que contracenava
com ela. E em vários dos belos musicais, principalmente ela fazendo a Piaf. De
emocionar. Lembrei-me dela e de Paulinho no espetáculo de Artur Xexéo sobre a
sua vida – meio qualquer coisa no primeiro ato, mas que cresce no segundo ato
quando surge a figura de Paulo Pontes, o amor, a arte, o engajamento político.
E Amanda Costa está perfeita como Bibi. Aliás, foi de arrepiar ver Amanda
sendo acompanhada do palco por uma Bibi na plenitude de seus 96 anos, cantando
Piaf lá da plateia, em sua derradeira e brilhante aparição.
A última
vez em que estive com ela foi no camarim do Teatro Tereza Raquel, nos anos 90.
Era uma nova montagem de “Brasileiro Profissão Esperança”, que Bibi dirigia e
atuava ao lado de Gracindo Jr. Mais do que isso, ela às vezes fazia tanto o
papel de Dolores Duran quanto o de Antônio Maria. Coisa que só mesmo uma atriz
com a bagagem e o talento enorme de Bibi poderia fazer. Eu a abracei forte,
emocionado, e nada falamos. Não havia necessidade: não nos víamos desde a
morte de Paulinho e parecia que o espírito dele pairava sobre nós, como se
profissionais da esperança também fôssemos.
Ao sair do teatro
lembrei-me de uma das histórias hilárias contadas por Bibi. Foi nos tempos do
Grande Teatro Tupi, idealizado por Sérgio Britto, que era exibido pela TV Tupi
nas noites de segunda-feira. Bibi “morria em cena” no espetáculo, que era ao
vivo, num tempo ainda sem video-tape. E lá estava ela, deitada no chão do
estúdio, “mortinha da silva”, esperando o corte do diretor. Foi quando um dos
câmeras chegou perto e sussurrou: “Dona Bibi, Dona Bibi, tá me escutando? A
câmera dois pifou e a senhora está em close na câmera 1. Não respire, Dona
Bibi, não respire, a senhora está morta!”. Ela não sabia se continha o riso ou
se morria de vez, sem poder respirar. Anteontem, grande atriz, profissional
por excelência, Bibi Ferreira cedeu ao apelo daquele câmera e parou de
respirar, agora para sempre.
- Comentários sobre o texto podem ser enviados, diretamente, ao
autor: Ronaldo Werneck
|