Minha história obstétrica
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Escolher especialidade para o acadêmico de Medicina pode ser difícil. Entrei
para a Escola de Medicina e Cirurgia sabendo que seria cardiologista,
encantado que estava com a eletrocardiografia. Sabia que nunca seria obstetra,
face à minha história obstétrica durante os seis anos de curso. Apesar do
início alvissareiro com a Obstetrícia. Parto corrido e do enxoval do bebê, que
me deram para levar e correndo atrás da maca com minha mulher em trabalho de
parto avançado, chegou à sala de parto da Beneficência Portuguesa apenas um
sapatinho. O resto ficou espalhado nos corredores do hospital. Não houve tempo
do médico obstetra chegar. A irmã obstetra Marcelina, de muito saudosa memória
e de inteira confiança do Dr. Salazar, reclamou da minha inaptidão, para
ajudá-la naquela correria. Ainda que fosse acadêmico de Medicina, estava no
início do terceiro ano e Obstetrícia era disciplina do sexto ano. E nasceu
Denise, marco em nossa vida, que seria completado quatro anos depois com o
nascimento do Carlos Diniz, já com Dr. Salazar e Irmã Marcelina na sala. E no
sexto ano como acadêmico bolsista começa minha gangorra obstétrica. Hospital
Getúlio Vargas, Penha, 24 horas semanais, plantões domingos. Trabalhava na
CEF, escriturário-datilógrafo, diariamente nos dias úteis, além do curso de
Medicina todos os dias. Vidinha dura. Assim sendo só pude fazer plantões nos
domingos. No dia a dia dos plantões fiz amizade com o Chefe da Obstetrícia,
que me propôs passar três meses no setor. Depois de uns três plantões o Chefe
elogia meu interesse, só que avisa que cada episiotomia que faço, depois era
uma dificuldade para refazer aquele períneo. Tão aflito ficava, vendo as
parturientes sofrerem, que não cortava como devia. Avisou que continuava me
apreciando, só que eu devia voltar para o atendimento geral e com a ordem de
não fazer chamados para partos, quando dos chamados de ambulância. Então só
sairia para p mal, isto é, passando mal, que englobava todos os tipos de
chamados, exceto partos. Plantões depois recebo pela escala dos acadêmicos um
p mal e saio na ambulância. Chamado em morro e chovia muito. Em chegando e
subindo para o casebre, era parto. De molecagem os colegas conseguiram que a
telefonista indicasse um p mal, quando de fato era parto. Graças a Deus, disse
o enfermeiro, que já conhecia minhas habilidades na especialidade, a criança
já nasceu. É só tirar a placenta e vamos embora, que o morro está um sabão. E
a placenta não saia. Já cortara o cordão umbilical, fizera o credé no
recém-nascido. O enfermeiro pedia pressa, que chovia muito. Vamos logo Dr., é
só puxar. Podia ser placenta acreta, que é caso raro e cirúrgico. Vamos levar
a paciente. Dr olha o tempo, tá ruim. Não tínhamos subido com a maca e amigos
da família colocaram a parturiente em porta de madeira, o pai de guarda chuva
carregava o bebê e com cuidado fomos descendo o morro. Escorrego e fico todo
enlameado. Na ambulância aviso a ocorrência e levo a paciente para o hospital.
Caso de placenta acreta. Na porta do Hospital me espera o Chefe da
Obstetrícia. Já não dei ordem para não sair para partos? Mostrei-lhe o chamado
com p mal. Tudo bem, só que placenta acreta é raridade e nestes muitos anos de
Getúlio foram vistos poucos casos com este diagnóstico. Coloque a paciente na
sala de parto e vou mostrar como deveria ter agido. Em seguida a ordem.
Preparar a sala para cirurgia, placenta acreta. Ainda bem que foi você a
atender e não tentou tirá-la de qualquer jeito. Continuamos amigos, só que não
voltei a trabalhar no setor de Maternidade, até que o chefe me chama em calmo
plantão. Estou com caso complicado. Uma menina de quinze anos foi estuprada, a
gestação evoluiu e estava em trabalho de parto. Subiu na mesa e se pendurou na
luminária da sala, balouçando e tentando chutar quem chega perto, além de
xingar os que se aproximam. Nem eu consegui chegar perto, para aplicar um
tranquilizante. É uma fera de forte e vão acabar morrendo mãe e criança.
Chamei o psiquiatra, ela se invocou, questionou logo sua masculinidade e quase
conseguiu acertá-lo com o pé. O psiquiatra sendo xingado de tudo, arrepiou
carreira. De novo tentei acalmá-la, quase me pegou com um chute e não sei o
que faço. Alguma ideia? Vale dizer que era dos mais velhos do grupo de
acadêmicos, único casado, já pai, trabalhava e estudava e com este tipo de
vida, era destacado pelos médicos efetivos, daí o meu ótimo contato com o
chefe da maternidade. Disse-lhe, deixa comigo. Pedi que tirasse todo mundo da
sala de parto, escolhi canto, que ela nos seus balanços não atingisse. O
lustre, mais lustre que luminária, da sala de partos era lindo e verdadeira
joia para todos no hospital. Fiquei no canto da sala, nada disse. O quadro era
horrível, tipo dar pena e preocupação. A gestante pendurada no lustre trouxe
minha santa mãe à nossa conversa. Não satisfeita também duvidou da minha
masculinidade, como já fizera com toda a equipe. Tinha repertório variado de
ofensas, sempre em baixo calão. Não respondi e cruzei braços. Cansou-se de
xingar e ouvi. - Não vai fazer nada? - Não. - Pra que veio então? - Sempre
quis ver uma mulher explodir. Vai ser legal. Filho aos pedaços, seus órgãos
para todos os lados. Você explode, morre e o mundo fica melhor. A jovem para
de se embalançar. - Você vai deixar eu morrer? - Vou, é o jeito. - E se eu
descer? - Infelizmente vou ter que deixar os outros lhe atenderem, mas prefiro
ver você explodir. - Eu desço e podem me atender. Não quero morrer. Chamei a
equipe. Ela ia se recusando a deitar-se na maca. Gritei. - Podem ir embora. Só
eu vou ficar, para ver a explosão. Deitou-se na maca, foi sedada e o parto
feito. Acreditem que estava com muita pena dela e só agi desta forma maluca,
para salvá-la. Talvez hoje fosse processado, só que naquele momento não
encontrei outra forma de agir. Meu cartaz com a Obstetrícia continuava com
diástoles e sístoles. Dias depois larguei o Hospital Getúlio Vargas (Penha),
fui terminar meu período de acadêmico bolsista no Hospital Miguel Couto
(Leblon), onde muito aprendi, ainda que sempre passasse ao largo da sala de
parto. Eram plantões de seis, seis e doze horas, muito mais amenos e sem
incursões obstétricas.
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pdaf35@gmail.com
Pedro Franco é médico cardiologista, Professor Consultor da Clínica Médica C da Escola de Medicina e Cirurgia
da UNI-RIO. Remido da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Professor
Emérito da UNI-RIO. Emérito da ABRAMES e da SOBRAMES-RJ.
contista, cronista, autor teatral
Conheça um pouco mais de Pedro Franco.
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