22/02/2013
Ano 16 - Número 828
ARQUIVO
PEDRO FRANCO
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Ia apanhar o automóvel. Dia
quente e com amolações. Pior, não estava com vontade de entrar em discussões,
o que é péssimo. Só me restava deplorar a insensatez dos que regram a vida
universitária do País de gabinetes e sem vivências pelo menos no ensino da
Medicina e conversar, conversar e também rezar muito. Vejam que não vinha bem
naquele fim de ensolarada manhã. A tarde o consultório cheio. A vidinha dura
de sempre. Sem falar na difícil situação do País, da Terra... Eis que vejo
galhos podres entre os automóveis, caídos das velhas árvores. Vou me atrasar,
pensei. Havia três guardas, um antigo servidor do hospital, um desconhecido e
quatro escadas em ação. Pasmem, atrasei-me e nem me zanguei. Três simples
escadas de madeira, amarradas uma as outras por cordas e cintos, para poderem
atingir o alto de uma figueira. Eram seculares figueiras do meu velho
hospital, minha casa desde aluno. Entrei ali solteiro e já era avô e dera
aulas a filho e neta! Uma quarta escada em ângulo amparava as demais e estava
sem estabilidade. Quatro homens seguravam as escadas e o quinto em precário
equilíbrio subia para alcançar os galhos mais altos, alguns já podres. E o
homem arriscava-se e não atingia o ponto desejado.
_ Doutor, um sabiá ficou preso e está de cabeça para baixo, ali.
Olhei e não vi. O sol dava-me nos olhos e não vi o sabiá laranjeira, meu
conhecido de outros dias e tardes. E como gostei do que via! Cinco homens
arriscavam-se a quebrar o pescoço, arranhar um carro, arrumar aborrecimentos
para salvar um sabiá. Que despreocupado, talvez interessado em uma sabiá, ou
ensaiando um novo acorde, prendeu o pé e estava em má situação, pendurado,
segundo informaram-me os aflitos homens.
_ Pode tirar o carro, Doutor!
_ Deixa p'ra lá, eu espero.
_ Se o Doutor tirar o carro, fica mais espaço para colocar aquela escada na
vaga dele.
Tirei o carro logo e, para não atrapalhar os outros automóveis, saí do Gaffrée
e Guinle. Estava menos amolado que chegara ao estacionamento, depois de um dia
difícil. Se os mais modestos arriscam a vida para salvar um sabiá, será que os
ditos mais cultos não saberão salvar o ensino, o hospital, a cidade, o estado,
o País e a Terra?
Não é pouco se agarrar ao destino de um sabiá, para mudar de ânimo,
perguntarão. Já o ouvi cantar pelas ave-marias, enchendo de encanto meu
hospital. Portanto a boa vontade daqueles homens foi bem recebida e salvou-me
o dia. No dia seguinte quis saber da sorte do sabiá. Que a minha curiosidade
não fosse provocar alguma advertência aos salvadores. Encontro um deles no
corredor vazio.
_ E o sabiá?
O final podia ser melhor, ainda que a ave tenha sido salva. Quem subia nas
escadas era um bombeiro, que se tratava no hospital. Com a escada, onde
estivera meu carro, pode chegar ao galho, salvou o passarinho e fez questão de
levá-lo. Este caso é antigo e o IBAMA ainda não atuava. E sabiás laranjeiras,
de canto triste e lindo, comedores de insetos e frutos, dificilmente criam-se
em gaiolas, por maiores e mais ricas que sejam. Seu canto necessita de total
liberdade, como todos nós sempre precisamos.
(22 de fevereiro/2013)
CooJornal nº 828
Pedro Franco é médico cardiologista,
contista, cronista, autor teatral
pdaf35@gmail.com
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