31/08/2012
Ano 16 - Número 802
ARQUIVO
PEDRO FRANCO
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O médico preenchia o prontuário e
fez a pergunta. Era a primeira consulta. Houve um titubeio e veio a resposta,
dada em voz baixa. — Prendas do lar. O médico era formado há quarenta anos.
Levantou os olhos da ficha, olhou a mulher que estava em sua frente, sorriu e
disse: — Não gosto de prendas do lar, não gosto de administradora do lar,
gosto mesmo é de dona de casa e é o que vou escrever. Vou dizer-lhe algo,
estranho para um primeiro contato, mas sei que o próximo doente desmarcou a
consulta e hoje tenho tempo de sobra, o que nem sempre, infelizmente,
acontece. E não aprecio qualquer dificuldade quando a mulher diz que é de
prendas do lar. Vou escrever dona de casa. E vale afirmar que não valorizo
dondocas, que não trabalham fora, nem em casa e batem pernas nas calçadas dos
"shoppings" da vida diariamente. — O doutor acha que mulher tem que trabalhar
fora? É isto? — Não, não julgo que mulher seja para ficar em casa, fazendo
tudo, ou para trabalhar em uma profissão, que a leve à rua. Mulher é para
fazer o que estiver na sua inclinação e escolha, ou nas necessidades
momentâneas da família. Se ficar em casa e for competente dona de casa, que o
diga de boca cheia, sem paradinhas e sem ficar encabulada. — Doutor, há tanto
preconceito... — Sei. Pense em quem organiza a casa, educa filhos, administra
esta empresa complicada chamada lar? Lida com cozinheira, faxineira,
vendedores, bancos, "shoppings" e educa os filhos? Conto-lhe que lá em casa há
eficiente dona de casa, que nos deu um lar e respaldo aos filhos, cuidou dos
velhos da família, enxugou lágrimas, animou risos e decisões e podia ser o que
quisesse, pois era primeira aluna do primário ao clássico. Atendendo a pedido
de jovem pouco experiente e com idéias inadaptáveis à vida de hoje, sei agora,
ficou cuidando da casa e dos filhos, que viriam e vieram. Depois netos que
também ajudou a criar e com permanente noção de colocação na família e na
sociedade. Nunca foi só de falar em cri-cri, crianças e criadas, ainda que não
fossem assuntos não abordáveis em suas conversas. Desculpe-me o discurso.
Lembro-lhe que ficou contrariada quando disse prendas do lar, estou certo? A
mulher sorriu e ficou mais bonita. Era destas mulheres em que o riso era uma
janela da alma e, quando sorria, mostrava-se melhor. O marido deveria adorar
vê-la sorrir. Os dois ainda conversaram sobre a função da mulher na sociedade,
na desigualdade ainda existente, no machismo, encontrado até em algumas
mulheres e daí foram propriamente à consulta, ao resto da anamnese, ao exame
físico, ao pedido de exames, medicação e o médico começou tratamento, pois a
pressão arterial estava alta, bem como o colesterol.
O tempo passou, poucas vezes o médico teve vagares para conversas maiores e
aos poucos foi conhecendo melhor a paciente, a da paradinha antes de dizer sua
profissão. Percebeu e tinha experiência em julgamentos, que era completa dona
de casa e mãe de família dedicada. E meses depois volta em dia em que tinha
vagares. Há faltas às consultas marcadas e sem avisos... — A Senhora está com
a pressão controlada e também o colesterol e nestas consultas anteriores
percebi que posso admirá-la pelo seu difícil, monótono, pouco reconhecido
trabalho de administrar a casa em seus múltiplos e repetitivos aspectos,
diários, muitas vezes com contatos difíceis com empregados, síndicos,
porteiros, professores, outras mães, dondocas, médicos e emergentes. — E como
o Doutor julga as mulheres que trabalham fora de casa. Nunca lhe disse, mas já
trabalhei fora de casa. — Dona Margarida, se, as que trabalham fora, são boas
donas de casa, ótimo? Sei que é difícil trabalhar fora e ser boa dona de casa.
E muitas mulheres conseguem ser profissionais competentes e cuidar do lar. São
muito, muito admiradas e conheço várias que poderiam servir de exemplo, ainda
que com muito esforço, enormes dificuldades, brigas constantes com relógios e
conseguem cumprir a dupla missão. E maridos devem ajudar e muito. A maioria
pouco ajuda, sei. E com a evolução da vida e a quebra de tolos preconceitos, o
homem pode ser dono de casa e a mulher trabalhar fora. Não há desdouro nenhum.
Alguém tem é que cuidar da família. Portanto a Senhora sabe que às verdadeiras
donas de casa, mães de família, presto minhas mais sinceras homenagens, pois
ficam, repito, monotonamente porfiando contra o cotidiano e pior contra o não
reconhecimento social. E têm a obrigação de continuar se “enculturando”,
cuidando e educando filhos e apoiando o marido, que só vai conseguir lutar bem
na rua pela subsistência, porque tem a mulher como apoio e alicerce. Ficando
em casa, ou trabalhando fora, saúdo as verdadeiras donas de casa, pilares da
sociedade, colunas feitas com os tijolos do desvelo, dedicação e amor. Pode
parecer discurso aprontado e demagógico. Não sou candidato a nada. É o que
penso e disse anteontem à minha filha, que está enfrentando problemas nestes
tempos difíceis de acomodação da sociedade. Daí estar com a fala na ponta da
língua, Dona Margarida. E repito que não sou candidato a nada, creia. Riram.
E, como acontece em muitas instituições, mudou o sistema de fichas e foi
necessário preencher de novo a identificação dos pacientes, que agora
apareceriam em tela de computador. O velho médico julgou que interpor a
máquina entre ele e o paciente não era vantajoso tecnicamente, ainda mais que
estava sem os dados anteriores. As consultas vão ficar frias e vamos ter que
recomeçar em muitos casos. Eram ordens de um tumultuado progresso e todos
deviam obedecer, sabia. Começou canhestramente a digitar os dados relacionados
à Dona Margarida, para atender às novas normas. Nome completo, endereço,
idade, estado civil?
— Profissão? Em voz firme, risonha, sem desnecessários e imotivados complexos,
Dona Margarida disse: — Dona de casa. Riram os dois e Dona Margarida nunca
mais teve titubeios ao nomear sua profissão. Até deste problema o velho médico
a tinha curado.
(31 de agosto/2012)
CooJornal nº 802
Pedro Franco é médico cardiologista,
contista, cronista, autor teatral
pdaf35@gmail.com
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