Era o que me
aconselhava sempre aquele antigo amigo. E, ao mesmo tempo, lembrava: -
Prá começar, é um crime obrigar as crianças a soletrarem a palavra “pílula”,
quando ainda nem controlavam a dança sonora do pronunciamento dela no
apertado espaço das suas miúdas bocas! No máximo, elas conseguiam balbuciar
uma sofrida e enrolada “plílula”. Então, antes dessa época, muitos
familiares preferiam, como remédios, beberagens nativas, ou os mais diversos
chás, na defesa às alterações de saúde que se sucediam. Fórmulas caseiras
muito conhecidas ou sugeridas, tradicionais até, eram lembradas e
adicionadas. Ah, ia me esquecendo... certa vez, oito aninhos ainda,
apareceu nas nossas brincadeiras de quintal, uma garota mais “graúda” (ou
parruda) que todos nós, meninos e meninas, sugerindo que fôssemos brincar de
médico! Novidade: ninguém conhecia a brincadeira. Não receitou pílulas.
Distribuiu todo mundo nas camas do grande quarto, encostou as janelas para
escurecer o ambiente, nos cobriu com lençóis, e começou a examinar a todos,
apalpando corpos. No meu, pelo menos, não se identificou nem como uma jovem
urologista e nem como uma jovem ginecologista. Suas mãos tatearam meus
“murchos brinquedos de fazer pipi”, depois, me fez também tatear o que ela
guardava lá embaixo dela. De lembrança, deixou apenas um cheirinho esquisito
nos meus dedos... Depois, ela sumiu, retornou à cidade donde viera, em outro
Estado. Uma vez ou outra, médico presente, tinha que me socorrer
obrigatoriamente dos comprimidos, sem falar das “temidas” injeções/vacinas.
Já alfabetizado, comecei a conhecer as propagandas dos cartazes afixados nas
farmácias, nos vagões dos trens da Estrada de Ferro Leopoldina Railway, nos
bondes do Rio de Janeiro. Eram pioneiras formas da futura “mídia”: Rhum
Creosotado: “Veja ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem
ao seu lado.../no entanto acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o
Rhum Creosotado!!!... ”Pílulas de vida do Dr. Ross, fazem bem ao fígado de
todos nós!” “Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal! Sem falar nas
musiquinhas, de igual teor, cantaroladas insistentemente nas rádios de
então... Depois, os enfermeiros do colégio interno e do exército
abusavam das suas atribuições, as receitavam-na até para... amenizarem as
pancadas dolorosas no nosso corpo, e... possibilidades (remotas) de
fraturas! Bom, negócio seguinte: eu só as utilizava nos momentos mesmo das
emergências!
Reconheço que tive que me socorrer delas, lá entre os 20 a
25 anos, para derrubar uma alergia a pó, poeira e similares. Depois,
esporádicas aplicações às dores comuns, cabeça, barriga, “coluna” ou alguma
parte do corpo que refletia algum distúrbio interno. Elas mais rarearam
quando apliquei os recursos corporais respiratórios adotados nas aulas de
ioga. A vida seguia... Eu ficara convencido com esta metodologia, tentava
então explicar os efeitos dos exercícios para os viciados “pilulistas”.
Ficando, depois, cada um no seu galho opinativo, não mais adiantava
polemizar! Esta alegria acabou depois dos cinquenta anos quando fui
surpreendido por uma embolia pulmonar, com entupimento na veia cava
inferior. Pronto, findou-se minha resistência e tive, sem discussões, que
aceitar a avalanche de medicamentos necessários à recuperação da minha
saúde, aí elas já também conhecidas como “drágeas”. Nunca, na minha vida, li
tantas bulas, algumas enormes e, às vezes, aterrorizantes! Parecia até que
eu era depositário de todos os males sanitários do mundo! Pensei comigo:
”-Tô f... ”, desculpem-me, tô... perdido! Tinha uma até que insinuava
restringir pensamentos de... suicídios! Tive que aceitar várias vozes
médicas bombardeando meus ouvidos e, qual hóstia na comunhão nas mãos únicas
do padre, os comprimidos se aquietaram na boca: ... “esta é para
insuficiência cardíaca congestiva, pressão alta, dor no peito; este é
antidepressivo; mais este, é para aliviar as gastrites; esta, também, contra
pressão alta, edemas; e, assim, uma sucessão delas, para combate da
hipertensão arterial leve e moderada; edemas (inchaços); diurética;
insuficiência venosa crônica funcional e orgânica dos membros inferiores;
pressão alta, inchaços, cirrose hepática etc; e essa aqui é para
monitoramento do sangramento; combate também o colesterol, melhora os
sistemas nervoso e capilar; previne as agressões ao fígado..., sem falar nos
que foram “empurrados” depois!
Um dos médicos, o Dr. Nigri (Lázaro
Ibrahim) a quem informei dos meus exercícios físicos antes do incidente,
principalmente as caminhadas por serras e litorais dos Estados do Rio de
Janeiro e São Paulo, mais as montanhas de Minas Gerais e Bahia, sentenciou:
- Foi isto que te salvou, meu caro!
E aproveitando a proximidade do seu
paciente, outros comprimidos me foram apresentados (ou impingidos?)
Li
tantas bulas que um dia ousei, diante do espantado médico: - Doutor, eu
posso trocar o cloridrato de bupropiona pelo cloridrato de sertralina? E a
silimarina e racemetionina vão fazer efeito imediato? E a diosmina e a
hesperidina são para tomar logo? E o alopurinol, só à noite? E o
colecalciferol, uma vez por semana? Até quando vou ser obrigado a tomar o
pantoprazol sódico sesquihidratado?
- Sossega, amigo! Tudo tem que ser
examinado com calma, só o tempo nos dará uma resposta! – adiantou o educado
médico, pois, a esta altura, eu já temia que ele me mandasse para a
longínqua Mérida! (Cidade da República do México, que conheci: aliás, um
valioso centro cultural asteca!)
Apesar dos pesares, continuei
obrigatoriamente sendo, pois, expectativa curiosa neurótica dos doutores, a
alegria dos eficientes e até virtualmente agressivos laboratórios, e
cultivador da tristeza dos meus... ma$$$acrados “pobres” bolso$$$$$$!
E
dizem até que, já ultrapassado o milagre dos meus oitenta anos, estaria
chegando a hora de parar de tomar as pílulas... Alertei: - Doutor,
doutor, não se preocupe: tô chegando ao fim do meu prazo de validade! Somos
todos sempre frutas perecíveis, abandonadas pelos caminhos do nosso imenso
universo...
Agora, aqui entre nós: se houver tempo, e Deus me permitir,
vou indo, indo, indo, subindo... para onde mesmo, hem? Outra dimensão? Não
me lembro. Depressa, depressa, cadê minhas pílulas para magnésia? Ou melhor,
seria... para amnésia?
Comentários podem ser enviados diretamente ao autor no email
miltonxili@hotmail.com
|