16/08/2024
Ano 27 - Nº 1.379





ARQUIVO
MILTON XIMENES

Milton Ximenes Lima


In memorian

OS FINS DE CAMINHOS

 

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal

A enfermeira enfrenta mais um dia da sua missão profissional e caritativa. Ouve:

- Não me abandone, não me abandone....

Localiza o paciente, que, após, emudece.

Ele lhe lembra, então:

- Me acompanhe até o fim do meu tratamento...

Depois, emenda:

- Me faça um carinho...

Ela puxa uma cadeira, coloca-a ao lado do leito, coça-lhe suavemente a cabeça.

Mas não pode ficar ali eternamente, tem que cuidar dos demais doentes.

Anda pelas dependências da enfermaria, distribui atenciosos olhares para os enfermos e as máquinas que lhes vigiam a saúde. Socorre os que se mostram mais carentes. Tem ajuda de outras suas companheiras neste mister necessário e obrigatório.

Frio, muito frio no centro de tratamento intensivo.

Ouvindo reclamações, põe suas mãos à disposição dos mais queixosos.

Deixá-los em posições mais relaxantes é o recomendado. Sono e sonhos se confundem nessas mentes tão precisadas.

Sabe também que os médicos estão chegando, apalpando-os ou acionando seus aparelhos auxiliares. Especialidades várias.

Bem mais tarde, algumas visitas serão admitidas, dependendo da gravidade dos casos. Umas, autorizadas a adentrar no ambiente, outras, no corredor, com notícias apenas.

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O doente vai recobrando os sentidos, mergulha, primeiro, numa impenetrável escuridão. Sente o calor de uma presença próxima, que não se apega a ele, não a identifica. Angustia-se:

- Não me abandone, não me abandone...

- Me acompanhe até o fim do meu tratamento...

Nenhuma resposta.

Entretanto, as mãos das enfermeiras ensaiam um carinho à cabeça, ele pede que nisso continuem...

Então, os rostos do médico, do psicólogo, e da irmã médica (visita) vão se tornando mais firmes na sua retina. Alívios sentimentais e emocionais crescem. Não lhes pode falar corretamente: está entubado, gagueja, mastiga as palavras. Tem que esperar o momento preciso da independência corporal. Sonhar com a “alta”! Repouso obrigatório, renovação das visitas, com notícias do que não viu e sentiu. Problemas com o pulmão? - estranha o homem.

- Como!? Nunca fumei! Sempre fiz exercícios, inclusive vinte anos de caminhadas por florestas, montanhas e praias deste Brasil! Tive Covid, mesmo com todas as vacinas com que me preveni?

Enfim, de novo lá fora, abrigo-me na residência da minha irmã, a família em volta, apoiando.

E... nos silêncios dos meus silêncios, na solidão de um quarto, venho saber que os cinquenta e cinco anos de convivência com minha mulher, Gloria Maria, não mais continuarão.

Partiu: suas cinzas é que testemunham, agora, sua passagem para um mundo novo e possivelmente redentor.

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... Um nome inspirado possivelmente em promessas à GLORIA, a Santa do Outeiro. Sorriso permanente nos momentos meus e dos que se acercavam. Professora dedicada, feliz com o aprendizado dos seus pupilos, triste por aqueles que, por impossibilidades dos pais, teriam suas vocações, comprovadas em sala, eternamente tolhidas. Que premiava os melhores com o nosso convívio e pequenas viagens. Magalhães Bastos, Inhoaíba e Friedenreich (Maracanã) testemunharam suas didáticas e solidárias ações. Lembrança triste, uma vez, na Estação de Inhoaíba, quando, em último dia de aula, sobraçando muitos materiais didáticos, foi abalroada por uma mãe afobada, e lançada no espaço entre a plataforma e os trilhos. Uma mão inesperada (e misteriosa) surgiu, porém, a guindou logo após, para o interior do vagão, que já começara a se movimentar. A pessoa desapareceu. Um copo d´água lhe foi inesperadamente oferecido. Em casa, a constatação de arranhões e ferimentos que foram medicados, mas a lembrança daquela providencial e intrigante mão jamais esqueceu! Flores e pássaros, estes rolinhas em sua maioria, na nossa varanda, retribuíam suas presenças, cuidados e carinhos, com, respectivamente, mais pujante colorido, e voos pela sala e com bicos interesseiros, famintos (canjiquinha no chão). Interagia com o Quequé, nosso inquieto e gargalhante papagaio Mais tarde, aposentada, dedicou-se pacientemente à pintura em porcelana, alcançando várias premiações, inclusive, em 2012, uma medalha de “Ouro”, concedida pela ABRAP – Associação Brasileira de Pintores sobre Porcelana. Também me lembro: sempre cultivou músicas contemporâneas, uma audição muito apurada, bem seletiva. Depois, veio o apoio à mãe, sua afeição maior, muito adoentada, a caminho de outra dimensão... E voltou, depois, para seus afazeres, fazendo retornar, aos poucos, seu costumeiro sorriso. Suas fotos em festas e viagens gravaram-se em álbuns e recordações do meu olhar companheiro.

Agora, em muitos sonhos, navegando em momentos de lembranças dos panoramas do Rio e de Maricá, ela ressurgiu sempre em forma de vultos em movimento, mas, na noite de 27 para 28 de julho de 2023, ela se apresentou, primeira e única vez, nítida, inteira, inteira! E, em seguida, se despediu das minhas visões e imaginações sonhadas. Para sempre...

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Uma semana depois de me abrigar na casa da minha irmã, Maria José, rostos de crianças curiosas e sorridentes apareceram na borda esquerda da minha cama. Depois, se elevaram, e passaram a brincar pelos espaços defronte aos móveis do ambiente. Mais raros, também rostos de pessoas adultas. A última era de uma mulher morena, vestida à moda colorida dos tailandeses, puxando uma criança pela mão...

Súbito, eles deixaram de frequentar meus olhares matutinos.

Descubro, depois: uma das minhas enfermeiras/cuidadoras, evangélica, atemorizada com o que eu constantemente lhe descrevia, passou a orar a respeito, acreditando que eram “artes” de espíritos malignos...

Fiquei órfão, novamente...

Comentários podem ser enviados diretamente ao autor no email miltonxili@hotmail.com



Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

miltonxili@gmail.com


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