A enfermeira enfrenta
mais um dia da sua missão profissional e caritativa. Ouve:
- Não me
abandone, não me abandone....
Localiza o paciente, que, após, emudece.
Ele lhe lembra, então:
- Me acompanhe até o fim do meu tratamento...
Depois, emenda:
- Me faça um carinho...
Ela puxa uma cadeira, coloca-a
ao lado do leito, coça-lhe suavemente a cabeça.
Mas não pode ficar ali
eternamente, tem que cuidar dos demais doentes.
Anda pelas dependências da
enfermaria, distribui atenciosos olhares para os enfermos e as máquinas que
lhes vigiam a saúde. Socorre os que se mostram mais carentes. Tem ajuda de
outras suas companheiras neste mister necessário e obrigatório.
Frio, muito
frio no centro de tratamento intensivo.
Ouvindo reclamações, põe suas mãos
à disposição dos mais queixosos.
Deixá-los em posições mais relaxantes é o
recomendado. Sono e sonhos se confundem nessas mentes tão precisadas.
Sabe
também que os médicos estão chegando, apalpando-os ou acionando seus aparelhos
auxiliares. Especialidades várias.
Bem mais tarde, algumas visitas serão
admitidas, dependendo da gravidade dos casos. Umas, autorizadas a adentrar no
ambiente, outras, no corredor, com notícias apenas.
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O doente vai recobrando os sentidos, mergulha, primeiro, numa impenetrável
escuridão. Sente o calor de uma presença próxima, que não se apega a ele, não
a identifica. Angustia-se:
- Não me abandone, não me abandone...
- Me
acompanhe até o fim do meu tratamento...
Nenhuma resposta.
Entretanto,
as mãos das enfermeiras ensaiam um carinho à cabeça, ele pede que nisso
continuem...
Então, os rostos do médico, do psicólogo, e da irmã médica
(visita) vão se tornando mais firmes na sua retina. Alívios sentimentais e
emocionais crescem. Não lhes pode falar corretamente: está entubado, gagueja,
mastiga as palavras. Tem que esperar o momento preciso da independência
corporal. Sonhar com a “alta”! Repouso obrigatório, renovação das visitas, com
notícias do que não viu e sentiu. Problemas com o pulmão? - estranha o homem.
- Como!? Nunca fumei! Sempre fiz exercícios, inclusive vinte anos de
caminhadas por florestas, montanhas e praias deste Brasil! Tive Covid, mesmo
com todas as vacinas com que me preveni?
Enfim, de novo lá fora, abrigo-me
na residência da minha irmã, a família em volta, apoiando.
E... nos
silêncios dos meus silêncios, na solidão de um quarto, venho saber que os
cinquenta e cinco anos de convivência com minha mulher, Gloria Maria, não mais
continuarão.
Partiu: suas cinzas é que testemunham, agora, sua passagem
para um mundo novo e possivelmente redentor.
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... Um nome inspirado possivelmente em promessas à GLORIA, a Santa do Outeiro.
Sorriso permanente nos momentos meus e dos que se acercavam. Professora
dedicada, feliz com o aprendizado dos seus pupilos, triste por aqueles que,
por impossibilidades dos pais, teriam suas vocações, comprovadas em sala,
eternamente tolhidas. Que premiava os melhores com o nosso convívio e pequenas
viagens. Magalhães Bastos, Inhoaíba e Friedenreich (Maracanã) testemunharam
suas didáticas e solidárias ações. Lembrança triste, uma vez, na Estação de
Inhoaíba, quando, em último dia de aula, sobraçando muitos materiais
didáticos, foi abalroada por uma mãe afobada, e lançada no espaço entre a
plataforma e os trilhos. Uma mão inesperada (e misteriosa) surgiu, porém, a
guindou logo após, para o interior do vagão, que já começara a se movimentar.
A pessoa desapareceu. Um copo d´água lhe foi inesperadamente oferecido. Em
casa, a constatação de arranhões e ferimentos que foram medicados, mas a
lembrança daquela providencial e intrigante mão jamais esqueceu!
Flores e
pássaros, estes rolinhas em sua maioria, na nossa varanda, retribuíam suas
presenças, cuidados e carinhos, com, respectivamente, mais pujante colorido, e
voos pela sala e com bicos interesseiros, famintos (canjiquinha no chão).
Interagia com o Quequé, nosso inquieto e gargalhante papagaio Mais tarde,
aposentada, dedicou-se pacientemente à pintura em porcelana, alcançando várias
premiações, inclusive, em 2012, uma medalha de “Ouro”, concedida pela ABRAP –
Associação Brasileira de Pintores sobre Porcelana. Também me lembro: sempre
cultivou músicas contemporâneas, uma audição muito apurada, bem seletiva.
Depois, veio o apoio à mãe, sua afeição maior, muito adoentada, a caminho de
outra dimensão... E voltou, depois, para seus afazeres, fazendo retornar, aos
poucos, seu costumeiro sorriso. Suas fotos em festas e viagens gravaram-se em
álbuns e recordações do meu olhar companheiro.
Agora, em muitos sonhos,
navegando em momentos de lembranças dos panoramas do Rio e de Maricá, ela
ressurgiu sempre em forma de vultos em movimento, mas, na noite de 27 para 28
de julho de 2023, ela se apresentou, primeira e única vez, nítida, inteira,
inteira! E, em seguida, se despediu das minhas visões e imaginações sonhadas.
Para sempre...
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Uma semana depois de me abrigar na casa da minha irmã, Maria José, rostos
de crianças curiosas e sorridentes apareceram na borda esquerda da minha cama.
Depois, se elevaram, e passaram a brincar pelos espaços defronte aos móveis do
ambiente. Mais raros, também rostos de pessoas adultas. A última era de uma
mulher morena, vestida à moda colorida dos tailandeses, puxando uma criança
pela mão...
Súbito, eles deixaram de frequentar meus olhares matutinos.
Descubro, depois: uma das minhas enfermeiras/cuidadoras, evangélica,
atemorizada com o que eu constantemente lhe descrevia, passou a orar a
respeito, acreditando que eram “artes” de espíritos malignos...
Fiquei
órfão, novamente...