E, de repente, a escuridão se fez
presente. Definitiva e total. Ascendo, em levitação não imaginada.
Sensação de uma subida sem destino. Só uma luz, bem distante, lá no fim
de um túnel, me atrai a atenção. Lembrança me vem de versos de gente da
minha terra: “Para o nauta perdido pelos mares,/rumo incerto a seguir
quando anoitece,/ entre a luz sombria dos luares,/ ela é o primeiro guia
que aparece”// Saindo da névoa que se derramou no espaço, vislumbro,
então, vultos vestidos de branco todos sorridentes, receptivos, se
aproximando...
Identifico rostos de familiares sepultados em vários
momentos dos tempos atrás.
De mau humor, energizei mensagens para eles:
- Saiam daqui, almas antigas!!
Lá embaixo, no quarto do hospital, o
lençol puxado pela mão direita da enfermeira vai me cobrindo o rosto.
Pouco depois, um moço, sério, finas luvas nas mãos, tateava pontos dispersos
do meu corpo, por momentos permaneceu pensativo, olhar para o alto.
Oscilava lateralmente a cabeça, num embalo negativo: - Perdemos mais
um, enfermeira...
Logo depois, meu corpo vai trepidando ao balanço de um
carro sobre os paralelepípedos irregulares de várias ruas. Em uma parada,
gente sem cerimônia me amassa músculos e ossos, desvenda minhas peles.
Escreve um deles algo num papel.
Novos embalos do carro, estacionamento
em outro lugar. Troca de vozes revela que é hora de convocar os parentes...
A mulher, primeiro, que ela se recolhera ao apartamento, na esperança de
descansar um pouco do plantão de quase uma semana que assumira no hospital.
Depois de muito tempo abandonado, outros trepidares no corpo. Estou,
finalmente, entrando na “cidade dos pés juntos”! Agora, meu corpo jaz numa
sala inutilmente refrigerada naquele inverno agressivo. Sala sem graça,
paredes claras, só a presença de um Cristo crucificado e fiscalizador acima
da cabeça. Espremem e ajeitam minhas carnes no espaço daquela grande
caixa de madeira envernizada. Cobrem-na, depois, com uma tampa Apagam a
luz e se retiram. E de novo a escuridão se faz presente...
Aprendizados
da solidão, que deveriam só ser desfiados em vida, renascem, timidamente.
Ainda mais porque ninguém gosta de fazer companhia a defunto.
Boa noite!
(Só para eles, operários fúnebres!).
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Dia seguinte.
Um jardim florido está prometido para me cercar o corpo.
Antes, encaixam-me a dentadura. Seguem-se diversos atos da chamada higiene;
um clister me desvirginiza, perfumes aspergidos abundantemente além dos
caracóis dos meus cabelos, em cima e... em baixo! Por mim, cheiros de
sovacos mal lavados e de pés-chulés deveriam permanecer, para
propositadamente afastar os delicados narizes das gentes-zumbis que, por
obrigação, me visitariam. Deixei de ser nu, vieram camisa, calça e
sapatos novíssimos. Uma raspadinha na barba, uma loção para tapear,
vigorosas penteadas na parte norte da minha cabeça embelezaram meu corpo em
despedida.
Aí chegaram as poucas floridas coroas, oferecendo os nomes de
gente de convivências. Das associações esportivas e culturais, nada a
esperar: viviam todas na tentativa de superação dos seus déficits! Da
presença de colegas de trabalho, alguns, nem aguardar: idosos sobreviventes,
tropeçando entre comprimidos e exercícios fisioterápicos receitados... meus
derradeiros heróis!
Familiares, de perto e de longe, vão chegando, se
embutindo no silêncio que o momento socialmente exige. Depois, um pouco
afastados, vão me esquecendo, e, às vezes, até sorridentes, comentam, em
gargalhadas, alegrias da vida. Graças aos céus, nenhum deles me chamou de
“coitado” ou “coitadinho”! Alguns, após os cumprimentos protocolares,
emudecem e recordam tradicionais orações. Para quê? Já passou da ocasião.
Melhor seriam pronunciadas ou mentalizadas na fase de tentativas médicas de
superação e convalescença! Além do mais, Deus, coitado, tem seu imenso
horário de atendimento, tem que ter ouvidos para toda a humanidade! Já
imaginaram? Haja fundos sacos de paciência! Papa Francisco que O defenda das
muitíssimas invocações!
Já decidiram os novos donos do “meu corpo”: desta
vez as minhocas passarão fome e serei lambido pelas implacáveis chamas de
uma cremação. Deverá ser um calorão, mas já estou aqui no ar, longe e livre
desta sensação “infernal”! Só lamento que, antes, não tenham doado minhas
roupas e acessórios a quem precisasse! Ou será que os cremadores já não
providenciariam isto, silenciosa e sorrateiramente, antes de entrarem em
ação? Mas, dizem, que a família é chamada a testemunhar... Tenho minhas
dúvidas!
De súbito, esbarro com o sábio Dante Aliguieri e suplico que me
conduza, ao menos, para o purgatório! Pergunto-lhe, ao mesmo tempo:
- O
que faz aqui, tão longe da sua terra? Não me responde. Não entende o
português, vive falando só em italiano. Passa para o latim. Custei a
entender, me enrolo todo, mas o diminuto grau de intimidade com a falecida
língua dá, ainda, para o gasto... Essas malditas declinações sempreme
atrapalham! Me valho até da parecença com a canção de Roberto Carlos: “Essas
declinações me matam!” Demoro a traduzir. Teimoso catolicão, Dante
transfere para mim a responsabilidade dos momentos últimos:
- “Só depois
que o Pedrinho, lá na entrada do Paraiso, lhe der uma absolvição!”
- “Tô
roubado”... pensamenteio, e vou me ausentando, de fininho... Meus muitos e
possíveis pecados recolho à fortaleza das memórias da minha cachola e não os
divido com ninguém, mesmo estando em outra dimensão...
- Com licença,
minha gente que me lê agora... vou, antes, apurar o mistério da mensagem
daquela luz que se me ofereceu numa escuridão lá no início do caminho deste
repouso final.
Depois eu conto... se me deixarem, ou ... me
psicografarem!
(*) Poeta Benjamin Silva, em “ O Itabira”,
Cachoeiro de Itapemirim, ES.
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miltonxili@hotmail.com
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