16/10/2024 Ano 27 - Nº 1.387
ARQUIVO
MILTON XIMENES
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Milton Ximenes Lima
Fundo de Gaveta: PÁTIO DE FACULDADE
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Com o devido respeito aos seres humanos envolvidos nesta narrativa, remexo
nos meus arquivos de tempos universitários, período de 1960 a 1964, na
Faculdade Nacional de Direito.
Apareceu entre nós, no meio de um
semestre de aula, a moça que se apresentava como Isabel, a Redentora, aquela
mesmo, libertadora dos pobres escravos em 1888. Para provar esta sua
identidade, perguntava a todos que dela duvidavam:
–
Querem uma certeza
disto? Procurem outra Isabel, a Redentora, por aí e vejam se encontram ela!
Sou a única!
Gente que a conhecia assegurava ser ela aluna da Nacional
de Filosofia, apesar de jantar noturnamente nos bandejões do restaurante da
nossa Faculdade. A questão, porém, não era essa... As pessoas que a
circundavam pensaram logo em apresentá-la a outro membro da real família: D.
Sebastião, nome de nascença do “Imperador”, título pelo qual se alcunhava. Ele
regressara ao nosso convívio depois de longa ausência, da “árdua campanha no
Rio da Prata” e posterior convalescença dos ferimentos recebidos nos
hospitais-manicômios do bairro do Engenho de Dentro ou de Jacarepaguá.
Exageraram até, espalhando que ele, finalmente, terminara o seu famoso
“Tratado sobre todas as coisas do mundo”, tendo, inclusive, para pesquisas, se
aboletado em um porão repleto de... esqueletos!
Normalmente, ele se
acomodava em uma das confortáveis poltronas do salão do Centro Acadêmico
Cândido de Oliveira (CACO), mergulhava em grossos livros e, após leitura,
rasgava-os justamente no espaço que separavam as linhas de leitura. No chão,
ficavam tiras e mais tiras das páginas destruídas...
Feitas as
esperadas apresentações, ela, impetuosamente, foi criticando:
–
Soube
que V. está fazendo um “Tratado”, mas acho que segue um caminho totalmente
errado: vai desenvolver ele conforme as palavras, em ordem alfabética! Ora...
o que são as palavras? Conteúdos opacos, fontes ocas que os homens inventaram
para satisfações sensoriais. Nada mais! Olha só: qual é a sua religião?
–
Católica, apostólica, romana! – ele respondeu.
–
Veja bem... - ela
continuou – o que significam essas três palavras? Nada! São invenções nossas,
como protestantismo, espiritismo e outras... todas sem valor!
D.
Sebastião, calmo, consciente da imponência do seu porte e presença de sua
majestade, ouviu tudo em silêncio, como um principiante em qualquer arte
costuma ouvir seu ídolo... Esperou-a chegar ao fim, e, mais seguro de si como
nunca, observou, coçando a barba:
–
Me diga aqui, como se chama mesmo a
senhorita?
–
Já disse: Isabel, a Redentora. Para os mais íntimos, sou a
Lúcia!
–
Lúcia... Lúcia... Ah, muito bem, muito bem... Lúcia! Quer
dizer: L mais U mais C mais I, mais A! É uma pena eu não acreditar no que V.
me diz! Porque saíram essas palavras pela boca de uma coisa que os homens
inventaram por bem chamar de Lucia. Logo, V. é a representação de uma palavra,
não significa nada! Não posso ouvir sua opinião... Você é zero!
E
rápido se retirou para ocupar no restaurante o lugar que era egoística e
ciumentamente seu do primeiro ao último dia do calendário escolar.
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miltonxili@hotmail.com
Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ
miltonxili@gmail.com
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