As pequenas aves são nossas visitantes nas manhãs e nos
entardeceres, entre nossas duas varandas de sétimo andar. Na do quarto,
pousam e se movimentam as rolinhas, no chão, no gradil, ou entre as plantas.
Na da sala, mais diversidade: beija-flores, sebinhos, bem-te-vis, sabiás –
laranjeira, sanhaços esvoaçam e pousam onde puderem. Alimentos as motivam.
Mas são as rolinhas que mais se oferecem como hóspedes, com a vinda da noite
e desorientação quanto ao voo da volta aos ninhos ou árvores de pernoite.
Assim, certa vez, um filhote se abrigou e dormiu entre as folhagens de uma
planta suspensa; numa outra, entrou no quarto quando estávamos ausentes, não
soube ultrapassar as vidraças, esperou-nos entre livros e caixas na parte
superior da estante, ali dormiu, e só se retirou com o clarear do novo dia,
e através do espaço que antes abrimos com o deslocamento da porta.
Entretanto, foram as peripécias de um beija-flor e sua mãe, que foram nossos
hóspedes por vários dias, que me deram a oportunidade de idealizar e
escrever uma crônica, que abaixo segue:
O ortopedista resolveu me dar
conselhos, além-remédios e vitaminas:
- Sua musculatura está dura,
tensa, seu esqueleto está sofrendo com seu peso, acima da média para o seu
tamanho. Vamos fazer exercícios, no mínimo caminhar. Não corra, é preferível
caminhar depressa. Procure uma academia de ioga, esforce-se nos
alongamentos, converse com o professor sobre seu corpo, ele vai lhe dar uma
orientação, vai também ajudar a combater a ansiedade...
Gastei tênis
em vários calçadões da cidade, do suadouro resultante ia para o bem-estar
dos banhos frios posteriores, energia bastante para o resto do dia. A ioga
me trouxe calma e a sabedoria do uso específico das ásanas para determinadas
reclamações do corpo. Nas caminhadas, só descontente estava com o ar que
respirava; mesmo à beira-mar, não confiava na sua pureza, carros passando
perto. Descobri as caminhadas ecológicas, fiz muitas e sadias amizades.
Tempos depois, com orgulho, eu apontava para as florestas do maciço da
Tijuca e saboreava os nomes dos picos que vencera e donde me deslumbrara com
as variadas e belas paisagens da cidade. Atravessei a baía de Guanabara,
entrei por Niterói, cheguei à serra da Tiririca. Em Parati, a trilha do
Corisco, antigo caminho do ouro para Minas. Em Minas, Santa Rita de
Jacutinga, São Thomé das Letras, Ibitipoca, Caraça, Carrancas...e, numa
tarde de domingo, quando voltava da minha quinta excursão à Ilha Grande, a
mulher, que praticava ioga mas não apreciava caminhadas, veio me soprar a
novidade:
- Abra com cuidado a porta do banheiro, nem acenda a luz...
Tem gente nova em casa desde sexta-feira, quando você saiu para a Ilha. De
tarde, bateu por aqui uma ventania danada. Eu estava na varanda quando vi
alguma coisa cair daquele cajazeiro ali em frente, um troço pequeno e
escuro, bem em cima do telhado da casa de cômodos. A coisa se mexia,
balançava. Peguei o binóculo e tive a certeza de que era um passarinho.
Fiquei preocupada, por ali passam muitos gatos. Interfonei para o porteiro
daqui do prédio e o outro, que estava de folga, arranjou uma escada e me
trouxe esse bicho aí, um filhote de beija-flor. Amassei uns papéis,
improvisei um fundo de ninho e cobri com um pano. Fui botando água com
açúcar pelo bico. Já li que isso não é alimento bom para eles, mas não havia
outra saída. No domingo, pela manhã, fui à feira da Praça Varnhagen (Tijuca)
procurar uma gaiola pequena, essa que tá aí. O moço lá disse que ele
morreria, que beija-flor não é bicho de cativeiro. Disse a ele que não iria
prender, mas reter o bichinho por uns tempos...
Olhei para minha
mulher e me conscientizei de que nós, bem ou mal, tínhamos que administrar a
novidade. Deixamos passar a segunda e a terça-feira. Na gaiolinha, levada
de um cômodo a outro do apartamento, o pássaro sempre avisava que estava
vivo, a linguinha passeando pelo bico, aceitando o improvisado néctar.
Torcíamos e nos alegrávamos com isto. Na quarta, resolvemos inovar.
Descansamos a gaiolinha na varanda e, o que era nosso desejo, se consumou:
a mãe apareceu, voejou sobre, deu nervosos rasantes, sumiu... Quando voltou,
pairou no ar, intrometeu o imenso bico nas frestas da gaiola, alcançou o do
filho, que vibrou as asas alegremente.
Graças! Daí em
diante era aquele ritual ao amanhecer e ao entardecer. O filho se revigorou,
vibrava mais o corpo, identificava a mãe, sons eram permutados. Cerca de dez
dias depois começou a ensaiar voos típicos da espécie dentro do pequeno
espaço, planava, oscilava para os lados. Concluímos que já tinha força e
equilíbrio suficientes para a liberdade que lhe seria necessária e oferecida.
A minha mulher chamou, então, o mesmo porteiro, instruiu-o para que
levasse a gaiola até o mesmo telhado e dela retirasse, com cuidado e
carinho, o beija-flor, e, do cimo de uma escada, o liberasse sob os galhos
do cajazeiro. Não foi preciso tanto. No meio do caminho para a árvore a mãe
se aproximou, o filhote escapou a acompanhá-la e foram para onde queriam.
Provavelmente eu terminaria aqui esta narrativa com o fim da nossa
angústia substituída pela satisfação íntima de ter feito um bem, uma
sobrevivência meticulosamente acompanhada. Como uma história de final feliz.
No máximo dela se captasse a mensagem de que o amor sempre se expande,
qualquer que seja sua natureza, além dos gestos dos homens, pode chegar aos
animais, que reagem de alguma forma. Esta, porém, não foi uma lenda para
crianças, foi caso real, teve testemunhas, foi fotografado. E a história
ainda prosseguiu, foi mais além...
Nessa mesma semana, em dois dias
diferentes, enquanto se distraía com sua arte de pincéis em porcelana, a
mulher foi surpreendida com voo inusitado da mamãe beija-flor, entrando,
pairando, e continuando assim por toda a imensa sala, num círculo perfeito
de retorno ao espaço lá fora do apartamento. Nunca fizera isso, ela só se
arriscava até as flores da jardineira, lá na varanda e, às vezes, descansava
nos franzinos galhos.
Parecia que ela viera, apenas, bater asas de
gratidão...