O feto, aproveitando-se do alimento do útero (barriga) da mãe, não seria
o primeiro antropófago?
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Os animais são
imagens do encantamento que marcam as lembranças de qualquer criança. Assim
foi comigo, a lembrança é uma espécie de tesouro da infância. D. Santa,
quando morávamos na rua D. Fernando, próximos da igreja de São Pedro, hoje
N. Senhor dos Passos, residia numa casa situada atrás da nossa, comprida,
imensa varanda à frente. Com o marido, Sr. Ivo e duas filhas, Rita e Teresa
(Tetê), esta da minha idade, o que fazia a criançada dizer que era minha
namorada, ocasião em que me emburrava porque ela era feinha e meio gaga.
Depois de muito insistir, e ajudado pelo fato de ela querer se desapegar do
local, consegui ganhar da D. Santa uma cachorrinha bonita, de pelos
alaranjados. Rapidamente “Bolinha” conseguiu angariar simpatias dos meus
familiares, sendo, muitas vezes, companheira de correrias e brincadeiras.
Todas as tardes, quando vinha do colégio, ela me avistava lá na escadaria,
atrás do prédio do Grupo Escolar Graça Guárdia (ou do ginasiano Liceu),
insistentemente latia, e se aproximava, e se empinava, agitando alegremente
o pequeno rabo... Às vezes tinha filhotes, os quais, com pena, dávamos.
Aí apareceu o carteiro que veio entregar um telegrama na casa de D.
Aída, nossa vizinha, que povoava seu quintal com três cachorros
habitualmente barulhentos e nada amigáveis. Eu mesmo fui “acariciado” pelos
dentes da “Boca negra”, e, com urgência, levado para o Instituto Pasteur.
Quando o homem chamou a dona da casa, a cachorrada lhe latia ameaçadoramente
entre as frestas da cerca defronte à casa. Excitada, Bolinha também latiu
perto do homem, no nosso quintal, sem avançar, apenas por imitação, como
sempre fazia. Apesar disso, recebeu violento pontapé na cara, saindo dali
ganindo de dor. Foi, depois, diminuindo seus movimentos, ficando pelos
cantos, vomitando o que comia. “Dindinha”, minha segunda mãe, em vão a
tratou. No dia em que ela morreu e seu corpo foi levado para ser atirado no
rio, a criançada que com ela convivera a acompanhava. As águas do Itapemirim
a recebeu e a engoliu, mais adiante.
Silêncios no portão lá de casa.
Não mais sua figura tão amada em meus andares da infância. O vazio que se
sucedeu me obrigou a, até hoje, não perdoar o causador desta tristeza, e até
lhe desejando uma vida bem difícil.
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Ainda
sobre animais, agora em tempos adolescentes, na casa dos meus tios no Rio.
Uma curica. A gente chegava e lhe falava: - “Papagaio louro...!”, e ela
concluía: “do bico dourado, purupaco!” Aprendeu nomes dos familiares: Raul,
Zezé, Venga ou Lenga (que ela inventou para uma tia-avó).
Assobiava “fiu-fiu” e ria, imitando as diferentes gargalhadas
familiares; miava, zombando dos gatos; arriscava o canto de algumas músicas
trazidas pelo rádio. Uma delas: “A mulher do meu maior amigo, me manda
bilhete todo dia,” mas não tentava continuar... (“Desde que me viu, ficou
apaixonada... Me aconselha “seu” Julio Lousada”, este um consultor
sentimental da época. Não podia ver a agitada garotada da vila, que não
gritasse. Nesse momento, era recomendável não chegar perto, ela corria atrás
da gente para dar umas bicadas. Corria atrás do Dodó, um dos cinco gatos da
casa; brincava de carro, arrastando, com o bico, em diversas direções, uma
tampa de lata; alegre pulava, abrindo as asas, se abríssemos o chuveiro para
ela se molhar/banhar. Se passava um urubu no céu, ela virava a cabecinha
para o céu e resmungava: Pruum...
Ela veio do Norte, de avião, há uns
cinco anos, como presente de um rapaz trabalhador do Hospital dos Servidores
à minha tia (madrinha), que o incentivara a candidatar-se a uma vaga de
trabalho lá. Ontem, num certo dia de maio de 1958, ela morreu de uma
infecção pulmonar, apesar dos esforços dos veterinários convocados. E sua
gaiola vazia está ali, bem na porta da casa, à espera das mãos do lixeiro.
Está vazia, está vazia: Curiquinha partiu. Pobre de nós que tanto a
amávamos...