O tempo urge e ruge para mim. Nas esquinas do próximo mês de abril
tropeçarei nos meus oitenta anos. Lendo Elyam Peçanha (Jornal Espírito Santo
de Fato), noto que, ao encerrar sua coluna social, ele relembra o seu
passado, sob a invocação “Eu sou do tempo... “
Resolvi embarcar,
também, nesta oportuna e curiosa viagem. Apenas adaptei à minha idade maior,
corrigindo a frase para “Eu fui do tempo...“, não me preocupando, inclusive,
com qualquer ordenação cronológica, tarefa praticamente impossível, tantas
são as oscilações das recordações deste pretérito viver. Algumas poderiam
até evoluir, mediante costuras literárias, para crônicas e contos, mas, por
enquanto, prefiro pincelar momentos através desta forma, mais rápida e
direta.
Portanto, amigos e inimigos que me tentarem ler ou ouvir,
compreendam estas resumidas gotas de costumes saudosos, aceitando minhas
confissões cachoeirenses escondidas no
Eu fui do tempo em que:
os infantes alunos do Grupo Escolar Graça Guárdia, ao se formarem no
grande pátio, em torno da grande escadaria da entrada principal, se
perfilavam militarmente, tomando distância, com um braço esticado, mãos no
ombro do colega à sua frente; entoavam o Hino Nacional, o da Bandeira, o da
Independência, o da República, o Cisne Branco, o Avante Camaradas da Força
Expedicionária Brasileira;
os alunos permaneciam de pé à entrada dos
professores na sala de aula e só se sentavam quando eles se acomodavam nas
cadeiras das suas mesas;
os alunos, para a escrita, levavam pequenos
vidros de tinta (tinteiros), substituídos, depois, pelas canetas-tinteiros;
em que levavam, também, borrachinhas acopladas aos lápis, e papéis
“mata-borrões” para se socorrerem no inesperado ou desesperado exagero das
tintas;
os alunos (que podiam) levavam seu lanche da hora do recreio
acomodado em uma merendeira de couro pendurada no ombro, enquanto outros
procuravam as sopas da “Caixa Escolar”;
os alunos mais pobres usavam o
papel-invólucro de pães para, desamassado, servir de rascunhos aos
exercícios escolares;
alunos poucos providos de inteligência eram
denominados de “tapados”;
os alunos dos então melhores grupos escolares
da cidade trocavam provocativos apelidos: os do Graça Guárdia eram chamados
de “Galinhas Gordas”, os do Bernardino Monteiro, de “Bestas Magras” e os do
Quintiliano Azevedo, de “Queijos Azedos”;
uma única vez, as crianças
receberam lápis, gratuitamente, com a propaganda de Asthenio Bagueira
Leal... para deputado estadual;
os pais, zelosos com a cultura dos
filhos, tinham, em suas estantes, os dezoito preciosos volumes do “Tesouro
da Juventude”, poderosa primeira enciclopédia domiciliar;
à primeira
ameaça de infecção na garganta, as crianças sofriam uma embrocação de
azul-metileno;
quando arrebentava a “fita” do filme projetado no Cine
Central, os espectadores vaiavam, batiam os pés, forçavam as fechaduras das
janelas que se abriam sobre o Itapemirim... até a nova emenda no celuloide;
antes da projeção do filme, tínhamos que acompanhar o noticiário do
Jornal da Tela, os “traillers” (chamados então de “reclames”) dos próximos
filmes, os inevitáveis desenhos do invencível ratinho voador “Possante, o
bramante”, e, depois do filme, os seriados dos imortais heróis da época;
o cine Santo Antonio, lá no Guandu, se especializava na exibição de
faroestes, aqueles em que o mocinho muito atirava, cavalgava, brigava,
brigava, e o chapéu não lhe caía da cabeça... ;
nas enchentes do rio
Itapemirim, os mais corajosos se lançavam desafiadoramente às águas,
saltando da Ponte Municipal, enquanto remadores também se posicionavam em
canoas esportivas (do Yole Clube?) ao embalo e sufoco das correntes;
só
então, a enorme piscina do Liceu Muniz Freire (e Grupo Escolar Graça
Guárdia) finalmente se enchia de águas provindas do cano que normalmente as
descarregava no rio;
a gente acompanhava a evolução e a involução das
enchentes nos quintais das nossas casas à margem, fincando, à noite, pedaços
de madeira que prometiam, no dia seguinte, com sua marca líquida,
expectativas de medos e alívios;
a gente acompanhava as caçambas se
movimentando sobre os morros do norte, penduradas em cabos de aço
sustentados por torres, levando calcário para a Fábrica de Cimento Barbará,
lá na rua Moreira, início do Coronel Borges;
ao mesmo tempo, se sentia,
vez em quando, tremer nossa casa, lá na rua D. Fernando 163, quando o
comboio ferroviário passava por detrás do nosso quintal, levando mercadorias
e materiais para a mesma Fábrica;
se assistia os jogos noturnos de
basquete na quadra do “Barbará”, no mesmo local;
se viu (eu vi), lá da
descida da rua D. Joana, um zepelin cruzando nossos céus;
as boiadas
trafegavam por nossas ruas sob a vigilância de valentes cavaleiros (o que
não me impediu de assistir, certa vez, na rua Moreira, ao pânico de uma
procissão religiosa que com elas se enfileirou);
o lazer dos domingos
era concentrado na Ilha da Luz, com seu parque protegido por muitíssimas
árvores e com suas piscinas naturais e artificiais;
para se chegar nela,
se atravessava uma precária ponte de madeira que nos fazia medo ao
verificar, abaixo dos nossos pés, entre os madeirames que a forravam, as
ameaçadoras águas do rio;
os motores dos dentistas que acionavam as
brocas de obturações eram estimulados através de pedais, como os do
consultório do Dr. Cornélio situado na galeria do Hotel Itabira, onde,
aliás, ficava o único elevador da cidade; e também, mais tarde, nos
consultórios do Dr. Athayr Cagnin e do Dr. Wilson Resende;
as
liquidações, nas vendas de tecidos patrocinadas pela Casa Franklin, lá na
rua Bernardo Horta, ressuscitavam o instinto guerreiro das mulheres
consumidoras;
o Café Campeão disputava com o Café Guandu o espaço
comercial e havia até, em certa época, concurso para quem conseguisse o
maior número de invólucros usados para serem trocados por outros, novos,
acompanhados de mais um, cheio de café;
certas padarias incentivavam o
consumo de sorvetes, marcando internamente o pauzinho do picolé, para dar
direito, a quem o descobrisse, ao recebimento gratuito de outro;
se
contemplava chegar, lá nas montanhas do lado sul, entre Bahiminas e Sumaré,
o tranquilo trenzinho da Estrada de Ferro Itapemirim proveniente da praia de
Marataizes, mas que, aos domingos se agitava, com um povaréu aboletado até
nos tetos dos vagões, e que, também, durante a semana, premiava nossos
colegiais com a primeira visão daquele “rio” tão imenso: o verde e castanho
mar;
na viagem deste trenzinho, ele parava na estação Paineiras e o
maquinista aguardava os passageiros avançarem nas pamonhas e canas de
açúcar, para, só depois, prosseguir com a viagem;
a criançada alegre
recepcionava e acompanhava, pelas ruas, os atores e animais do circo que
chegava e, depois, nos espetáculos, admirava a habilidade e perícia dos
equilibristas, a atuação dos animais, e ria das trapalhadas dos palhaços;
frequentei aulas de datilografia, com D. Olga Braga (particularmente) e
com D. Ucha (escola situada na rua D.Joana);
os meninos se distraíam com
bolas de gude, piões, jogo de porcas (tempos de chuva), “papagaios” e as
improvisadas “peladas”; as meninas, com brincadeiras de inspirações
domésticas, correrias (piques), amarelinhas etc;
os amiguinhos mais
pobres sempre nos presenteavam, nos aniversários, com sabonetes,
estrategicamente acobertados (e valorizados) com papéis coloridos;
era
moda cortar o cabelo “à Príncipe Danilo”; em que, nas vazantes do rio, era
costumeiro saltar de pedra em pedra e chegar à ilhota defronte, onde,
colhendo bolebas de mamona (pequenas frutas), se iniciava uma batalha de
arremessos;
os funerais/enterros eram realizados através das ruas, com
acompanhamento a pé, caixão lá na frente, abrindo o cortejo, rumo ao único
cemitério, enquanto nas calçadas as pessoas se postavam respeitosamente, os
homens até tirando os chapéus;
o campo de tênis do Semprini, lá na rua
D. Fernando, era a alegria dos poucos simpatizantes do esporte nos domingos,
pela manhã, e nas quartas-feiras, à noite;
nos carnavais, os bonecos
patrocinados pelo Clube Cruzador Brasileiro, a imensa Babiana entre eles,
saíam da rua Nova e D. Fernando (dos Semprini) rumo ao desfile na praça
principal;
na Sexta-Feira da Paixão, o silêncio no ar e o comedimento
nos gestos eram cultivados, só se ouviam músicas suaves, a maioria
clássicas, e alguns homens procuravam, até, não fazer a barba;
se
realizava, na Semana Santa, a procissão do Encontro, em que a imagem de N.
Sr. dos Passos saía da então Matriz de São Pedro (rua Don Fernando) e a de
N. Sra. das Dores lá da igreja de Santo Antonio (Guandu) e se encontravam na
praça Jerônimo Monteiro, ponto, também, do incentivo e entusiasmo de
oradores sacros, geralmente vindos de outras paróquias maiores;
as
festas juninas eram particulares e públicas, avançando na noite com seus
vários divertimentos, entre danças e fogos de artifício (busca-pés,
foguetes, rojões), saltos sobre a fogueira, caminhadas sobre brasas;
nas
ruas da infância desfilava a figura do grande e andante Tenerá, vestido tal
cangaceiro, acompanhado dos seus cachorros, e que apregoava, com seu
megafone, nomes e promoções de algumas lojas, tornando-se, a meu ver,
pioneiro veículo de propaganda da cidade;
aquele sorveteiro, o “seu”
Eduardo, vindo lá do bairro Coronel Borges, arrastava sua carrocinha e
apregoava: “Olha o sorvete e o picolé!”, e a quem as crianças, escondidas
nas casas e nos quintais, completavam com um “É de leite de mulher!”;
durante certo tempo, carroças médias abrigavam leite e o vendia (Selita),
com medidor de vidro, pelas ruas;
a Rádio Cachoeiro (“De Cachoeiro para
o mundo”, repetia) tinha um programa diário chamado “Às suas ordens”, em que
as pessoas, com dedicatórias previamente escolhidas, se ofereciam músicas,
principalmente nos aniversários;
em um programa matinal dominical
Roberto Carlos exibia seu promissor gogó nas músicas, entre outras, “Olinda,
cidade eterna” e “A fonte a correr, chuê, chuá... (não me lembro do título);
algumas pessoas viram o mesmo Roberto, mesmo com seu problema físico,
dominando e conduzindo uma bicicleta;
as meninas dividiam suas simpatias
e antipatias radiofônicas entre as vozes da cantoras Emilinha e Marlene;
a nossa moeda (réis) era muito valorizada, a ponto de servir de troco dos
óbolos doados à igreja (em saquinhos);
as famílias, em momentos
vespertinos, traziam suas cadeiras para as frentes das suas residências e
iniciavam longos e tranquilos papos, enquanto os filhos brincavam livremente
pelas imediações;
pelas janelas da Escola de Comércio, ao nível da rua
Vinte e Cinco de Março, a gente se defrontava sempre com as figuras dos
famosos educadores Alfredo e Aurora Herkenhoff;
sacudidos por notícias
alvissareiras, partiram de Cachoeiro veículos e caravanas com destino a
Urucânia, Minas Gerais, onde o Padre Antonio maravilhava a todos com seus
milagres;
superando os vendedores ambulantes com seus costumeiros
balaios de produtos hortigranjeiros e frutíferos às costas de cavalos e
burros, o japonês Sukessa Nakao encostou seu caminhão na cabeça-sul da ponte
municipal e passou a monopolizar, enquanto esteve na cidade, a venda de
grandes e belíssimos tomates cultivados nas terras dos Athayde;
as
estampas que acompanhavam o sabonete Eucalol (trazendo, no verso,
informações culturais) viravam objeto de curiosidade e troca entre os jovens
estudantes;
também os sabonetes Lifeboy ofereciam prêmios a quem
encontrasse uma chave no seu interior;
a divulgação dos próximos filmes
a serem exibidos na cidade era na forma de papéis-cartões, onde “matinées” e
“soirées” eram cuidadosamente especificadas;
as revistas Tico-Tico e
Vidas Infantil e Juvenil foram preferências de crianças e professores, antes
da chegada dos “agressivos” (à época) gibis;
apareceu a moda do uso das
bicicletas, revolucionando a mobilidade casa-escola das crianças e sendo
introduzidas, pelos mais ricos, nos festivos desfiles escolares dos Dia de
Cachoeiro e da Independência;
se ouvia a passagem inesperada e
barulhenta da motocicleta do Murilo Sampaio, com a inédita acomodação
lateral de um passageiro;
os guarda-chuvas eram chamadas de
“sombrinhas”, e até, nos agressivos verões, de guarda-sol;
as crianças
tinham medo da grande imagem de N. Sr. dos Passos, lá num canto escuro da
Matriz (à direita), de cuja cabeça desciam enormes fios de cabelos naturais
que lhe encobriam o rosto;
nos casamentos, ainda não existentes os
“flashes”, o (a) fotógrafa (D. Amélia) acionava disparadores remotos a cabo,
provocando um clarão produzido por pós de magnésio inflamáveis, sucedido por
uma fumaça escura que se elevava no ambiente! (Indagação toda minha: isso
poderia explicar os olhos espantados dos noivos na maioria das
fotografias?);
se fundou um Aero-Clube;
os aviões da NAB - Navegação
Aérea Brasileira começaram a sobrevoar a cidade, facilitando ligações com
Vitória e Rio de Janeiro;
a utilização dos trens da Estrada de Ferro
Leopoldina Railway era o mais procurado meio para se chegar ao Rio de
Janeiro, então capital federal, através das composições chamadas “expresso”,
que partiam, diariamente às 5h30 da manhã, e as do “noturno”, com
carros-leitos, que vinham de Vitória, em dias determinados, alcançavam a
cidade às 16h30 horas, e seguiam para o Rio, após procedimentos de embarque
e desembarque de pessoas e mercadorias;
nas únicas linhas de ônibus
municipais que faziam então os itinerários Ilha-Coronel Borges e
Aquidabã-Bahiminas, o “trocador”, quando chegavam no último ponto, se
levantava e alertava: “ - Ponto final, faz favor as fichas!” (...de
plástico-sistema de controle dos pagamentos e passageiros da época);
jornaleiros jovens apregoavam jornais da cidade e os do Rio (um dia de
atraso, porque vinham de trem);
para se comunicar com pessoas em outras
cidades, tínhamos que acorrer ao único prédio da Telefônica, lá no alto da
rua Costa Pereira, onde, sentados, aguardávamos o chamado da telefonista
para ingressar e falar numa cabine;
o trânsito de carros era, nas noites
de domingo, após a última sessão de cinema, impedido na Praça Jerônimo
Monteiro para permitir o livre passeio, em seus arredores, de ricos e
pobres, incentivando, muitas vezes, aproximações sentimentais...;
personagens de rua, desassistidos, mendigavam esmolas às casas, somente nos
sábados;
os namorados noturnos “mais assanhados” eram convidados a
passear no carro da polícia, apelidado de “Mamãe carinhosa”, até... as
dependências “mais calmas” da Delegacia...
Ponto possivelmente final:
não vou lhes fornecer o número da minha sepultura, para, como costumavam no
meu tempo, os conhecidos nele apostarem no jogo do bicho!
Minha
cautela, gente: já procurei saber como é essa tal de cremação! Só sei, hoje,
que é um calor de matar!