Ontem me avisaram que uma das tias maternas estava com problema no
joelho direito, sob uma severa fisioterapia. A família desenvolveu o salutar
hábito da solidariedade, a preocupação se expande, todos querem, de alguma
forma, ajudar. Estou nela. Do outro lado da linha telefônica não é a tia que
atende, mas a irmã dela, Lulu. Tomo um susto, parece brincadeira,
repergunto:
- Quem?
- Lulu... - me repetiu.
Relembro,
primeiro e rapidamente, que os números dos telefones das duas têm o mesmo
prefixo e outros números, depois, quase coincidentes. Já me ocorrera antes
esse equívoco de trocas. Segundo, alguém usar o apelido da minha mãe, Lulu.
Era mau gosto, ela já não mais estava em sua casa há meses, nem na casa de
ninguém, porque de nós e da vida se despedira definitivamente num certo 31
de julho.
Desliguei, respirei yogamente e, dessa vez, alcancei os
ouvidos da adoentada tia, a Naná, atualizei-me com notícias sobre ela e os
primos, mas, enquanto conversava, ansiedade persistente me levou, depois, a
meditar e apoiar-me na minha deficiência auditiva para justificar o que
ouvira, e duas vezes: “Lulu”!
Fui ao centro da cidade, cumpri a
agenda das atividades previstas. Pensamentos ainda não acalmados. À noite,
não resisti, abandonei a leitura desatenta do jornal, isolei-me no quarto,
peguei o fone da extensão, toquei para a casa que fora da minha mãe. Ninguém
atendeu. Mesmo assim, meu sono não foi tranquilo.
Sempre curiositei
conversas, palestras, livros sobre o chamado outro lado da vida, ou, como
alguns preferem, o além, independente dos credos das fontes informativas.
Isto me conduziu a elaborar conceitos, principalmente quando religiões e
seitas se afinam em opiniões coincidentes. Todas elas imaginam um estágio
purificador para quem parte, como, no catolicismo, se fala em um purgatório.
E, a meu ver, nada impede que as almas ou formas de energia que se
desprendem do corpo já inútil fiquem por aí, pelo espaço, visitem locais e
pessoas que lhe foram queridas. Tenho lido tantos depoimentos sobre
fenômenos afins, que eles me impelem à abertura da tentativa de compreensão
desses mistérios.
Não divulguei minha surpresa telefônica, nem mesmo
às minhas irmãs ou a pessoas ligadas religiosamente à apreciação e estudo
desses acontecimentos. Apenas me preparei emocionalmente para o que
programara. Manhã seguinte, quase perto do meio-dia, acionei, bem devagar, o
número "da casa da minha mãe". A voz inconfundível se fez presente, após
algumas chamadas:
- Quer falar com quem? Alô, falar com quem?
Emocionara-me, eu demorara a responder, disfarcei o tom:
- D. Maria
Luiza está?
- É ela mesmo, meu filho!
Cacetada na cuca do
ingênuo aqui, fiquei em silêncio besta, qual a mãe não conhece total e
"eternamente" o filho? Hesitei, só soube dizer:
- Como está a
senhora?
- Muito bem!
E agora? É continuar, ver até onde
chegaria... Orientei-me.
- Quê que a senhora anda fazendo, aí?
- Estou visitando minha casa, gosto de estar aqui...
- Mãe, mãe,
se desligue desta terra, aqui você já sofreu muito, isto faz mal pros seus
novos caminhos!
Renasceu nela a conhecida repreensão, quando
contrariada:
- Nada me faz mal agora! Faço o que quero, não se meta!
- Então eu vou aí!
- Pra quê? Você não vai me ver! Me deixe ver
minhas coisas aqui!
- Assim, a senhora vai se prejudicar muito, mãe!
Tem que se despedir... Lembra, quando a senhora partiu, não se desligou da
Zezé, que adoeceu logo depois. Tivemos que orar muito, houve pedidos de
intercessão ao Frei Luiz de Petrópolis para ajudá-la a libertar-se daqui...
- Mas ela era minha filha, estava muito doente, senti que precisava de
ajuda. Vivi muitos anos na casa dela, era a minha médica, eu não podia
abandoná-la. Era até um dever...
- Mas a senhora não estava ajudando,
como pensava. A senhora ainda não assumira seu novo plano...
- Estava
e está difícil! Vivi uma vida cheia de preocupações, que se tornaram
hábitos, me atrapalharam muito. E agora daqui acompanho vocês com as
papeladas do inventário, mexendo nos meus papéis, nas minhas coisas, tanto
trabalho por minha causa!
- Esqueça isso, mãe... A senhora deixou
tudo arrumadinho, tudo escrito. E a senhora nos deu educação e instrução
suficientes para enfrentar as dificuldades. Agora chegou a vez de buscar aí
a paz que não encontrou aqui! Vamos orar mais ainda para que a senhora
encontre a luz do seu caminho e descanse, enfim...
- É tão difícil...
A voz sumiu. Nenhum som a mais. Quem se angustiou fui eu:
- Ô
mãe, escute, ô mãe...!!
Inútil, partiu-se o cordão.
Depois do
almoço, fui até a casa, não encontrei, de imediato, qualquer alteração no
ambiente, as coisas estavam como deixáramos, os três irmãos, na última
estada lá, pouco mais de um mês. Mas, ao me dirigir à saída, um detalhe me
chamou a atenção, me assustou: o fone fora do gancho, deixado ao lado do
aparelho.
Minhas irmãs não estiveram lá, só naquela vez, comigo, nem
mandaram a faxineira, porque estava eu com as chaves...
Minhocas e
perebas no meu cérebro! Difícil de compreender e encarar aquele telefone,
que recoloquei no exato lugar. Pensei sugerir às minhas irmãs pedir um
alvará ao juízo do inventário para poder vender o apartamento, ele era
triste lembrança, descartável.. Mas, a que pretexto? Depois, nem tive a
coragem de ligar mais...
Como não contei esta história a ninguém,
este conto serve como desabafo, uma catarse, ficará jogado entre os muitos
papéis literários que apinham uma das gavetas da escrivaninha. Se alguém
descobri-lo, tente entender, ou, pelo menos, me ajude a compreender...
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miltonxili@hotmail.com
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