Mais uma manhã de sua vida, agora mais
tranquila. Da estante absorve leituras, a maioria há muito desejadas. Vez em
quando, também, uma viagem materializa sonhos geográficos ou históricos, a
mulher sempre ao lado. Nos fins de semana, o tumulto dos netos. Com a ajuda
dos filhos, novas experiências no novíssimo micro, navegando timidamente pela
eletrônica inteligente. Sessenta e cinco anos, depois de servir, muito bem
servida, àquela instituição fazendária, concursado, concursado com muito
orgulho, sim senhor, um diploma de atuário lá na parede, e muita voz gasta em
salas de aula, muito giz respirado, mãos sujadas na, na verdade, sua
primeira profissão: o magistério...
Um telefonema vem resgatar esses
primeiros tempos, testar que sua alma abandonou mesas e bancos escolares, o
prazer da sua voz semeando ensinamentos, o amor correspondido pelos alunos
nas trocas de emoções e energias, a consciência de ser útil a alguém, ser
parte na esperança de cada um na busca de futuros caminhos. Aquela voz do
ex-aluno e amigo lhe traz a proposta que temia, pedia sua colaboração no
curso pré-vestibular onde era diretor.
Ficou de pensar, pediu um
tempo. Mera delonga, como defesa à surpresa do convite.
A equipe do
colégio funcionou bem, correspondeu às expectativas, estavam aí os jornais
para festejar o grande número de aprovados. O simpático, envolvente, eufórico
amigo, não se contentou só com isto:
- Sábado, agora, vou dar uma
festa lá em casa, vou oferecer para vocês uma boa galinha à cabidela! Agora,
o detalhe... é uma festa só para nós, professores. Não levem companhias, nem
familiares, será uma comemoração muito íntima em homenagem ao nosso esforço!
Sabia-se e agora se via: o homem tinha posses, aquela mansão de dois
andares, estilo antigo, naquele bairro central e histórico da cidade,
jardins, piscina, garagens, por onde espalharam os convidados, pratos e
bebidas à mão, conversas descompromissadas. Divinas sobremesas da cozinha
mineira!Saboreava e conversava, sentado no banco do jardim, com o jovem
professor deHistória Geral. Retornou ao salão, onde, a um canto, eram
abandonados os pratos usados.
De súbito, jovens e desconhecidas
mulheres começaram a tranquilamente distribuir camisinhas. Olhou para o
companheiro, que, até ali, o seguira, trocaram sorrisos chochos, indagações
no cérebro, e mais arregalaram os olhos quando o anfitrião, subindo à mesa,
anunciou:
- Agora, gente, é que a festa vai começar!
O homem
começou a oscilar o seu corpo sob o ritmo da música, começou um
“streap-tease”, logo acompanhado por uma das moças, por sinal, um pitéu!
Casais se aproximaram, começaram a dançar, a desaparecer pelas dependências
da casa, voltavam, trocavam de par.
Surpresos, confusos, os dois se
esforçaram para aceitar como normal aquela euforia, não queriam ser tomados
como “caretas”, “antigos”, mas sentiram que não embarcariam na alegria geral.
O professor de História, então, recém-casado, ainda estava em outro astral, e
ele, com idade bastante para não se meter nessa. E, perigo, depois do almoço!
Foram saindo de mansinho, com muita criatividade e elegância, “tinham
compromissos outros naquela tarde, casamentos...” No portão, as meninas ainda
lhes oferecendo cartões de certa casa de massagem!
Entretanto,
reconhecia, ficara excitado com as imagens da festa, as trocas de carícias,
movimentos convidativos, mãos trabalhando, saias subindo, pernas, visões
entrecoxas... e, em casa, determinado momento, não resistiu, surpreendeu a
mulher com, por detrás, uma cheiradinha na nuca, código do casal para
brincadeirasmais íntimas. Ela estranhou, aquela atitude havia, com a idade,
se tornado mais espaçada, e brincou:
- Ué, eu não sabia que galinha à
cabidela era prato afrodisíaco!
Ele continuou a provocá-la. Sorriu
internamente: quase que ela adivinhara, realmente nada tinha a ver com a
galinha à cabidela, mas quanto às galinhas, eram tantas!
- Nada disso,
mulher! É que bateu uma saudadezinha!
Retirou-se para o quarto,
descobriu a pílula revolucionária e salvadora, tratou de absorvê-la. Mais
tarde, sente sinais no seu corpo, que ele está pronto para a sua alegria
particular, aguarda a mulher, teimosa a apreciar um programa de televisão.
Na sala, o telefone geme e, aí sim, ela vem correndo lhe anunciar:
- Prepare-se, prepare-se! A Lucia entrou em trabalho de parto, está
saindo agora para a maternidade! Vamos lá, vamos lá!
Não sabe o que
fazer. Obrigações de pai e avô fazem-no responsável na solidariedade ao
nascimento do terceiro neto, mas... como acalmar, como conter, como disfarçar
seu desejo tão anunciado visivelmente na zona sul da frente do seu corpo?
Abre o guarda-roupa, lança um olhar súplice para o gravateiro e se
consulta:
- Será que duas gravatas velhas, com uma boa amarrada nas
pernas, vão me ajudar?
(RT 01/04/2018)
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miltonxili@hotmail.com
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