Milton Ximenes Lima
SABENÇAS DE AVÔ
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A primeira imagem do avô que Eugenio pinça do
baú dos seus antigos olhares infantis era ele interrompendo a leitura de um
livrão, agachando-se para abraçá-lo, e beijá-lo à testa, na hora de ir para a
cama:
- Boa noite, meu neto, durma com Deus...
Tempos mais tarde, diversos momentos. Ele já na escola primária, no Grupo
Escolar “Graça Guárdia”, o avô o arrastava para curtos passeios pela cidade
ou, abandonando o balcão da venda instalada na frente da casa da rua Moreira
nas mãos do único empregado, o fazia descer o barranco, nos fundos, que
acabava nas margens do Itapemirim, de onde, às vezes, até se arriscava a
guiá-lo pelas pedras limosas até as ilhotas do centro do rio. Nelas se
sentavam e, então, em longos silêncios, ficavam vendo as águas passarem.
Depois, devagarinho, ele lhe falava de coisas que bem não entendia, mas que
aceitava como pequenas histórias:
- Devemos respeitar os animais... Tá vendo os pescadores ali, meu neto? Estão
jogando na terra os peixes que acham que não servem. Não podiam jogar os
bichos de volta pro rio? E quanto aos passarinhos, vovô vai ficar muito triste
vendo você um dia com alguma atiradeira na mão...
- Ta vendo o rio? Olhe só o que ele faz quando encontra uma pedra! Ele dá a
volta pelos lados, volta a se juntar depois, meu neto. Você, um dia, vai
aprender que não adianta a gente ficar brigando sempre com uma pessoa ou com a
vida. Pense, contorne a pessoa ou o aborrecimento, e, mais adiante, você vai,
mais calmo, encontrar o caminho... Os rios sempre buscam o mar, e você, meu
neto, deve sempre buscar o seu sonho, depende só da sua força de vontade.
Início da adolescência, entre os primeiros passos de ginasiano do Liceu:
- Já viu os pássaros, meu neto? Quando os ventos estão contra seus vôos, eles
não insistem, não resistem, até aproveitam para planar, subir, descer,
dependendo do que eles sentirem como o melhor para eles... Guarde isso para a
sua vida!
- E os galhos das árvores? Quase a mesma coisa... Quando vier uma ventania,
você vai notar que só aqueles que se dobram momentaneamente é que vão ficar.
Não se quebram. Parece até que sabem que a tempestade vai acabar e eles
voltarão à sua posição normal, natural. A gente está sempre aprendendo as
lições de paciência que a natureza dá pra gente... É só prestar atenção a tudo
na vida. Sempre alerta, viu?
Primeiros amores, e o mundo se decifrando, mais uma vez o avô:
- Outra coisa, meu jovem... Aprenda o hábito de estar sozinho, a não depender
sempre do coração e das atitudes das outras pessoas para ter a sua paz
interior. Vá se desligando, aos poucos e dentro do possível, dos laços humanos
que lhe cansarem o caminho. Lembre-se que, afinal, não é o agasalho que causa
o aquecimento da gente, mas o próprio calor do nosso corpo é que se reflete no
agasalho e fica retido sob nossa roupa... O que quero lhe dizer é que o nosso
brilho vem de nós mesmos...
Mais tarde, ao tranco das decepções:
– Não fique triste, meu jovem, quando as pessoas e coisas que surgirem na sua
vida vierem lhe aborrecer, se um sonho não se realizou. Pare para pensar,
mesmo que uma grande dor lhe machuque o coração. Não importa o tamanho e as
conseqüências dessa dor. Lembre-se do milagre da cachoeira, é nas grandes
quedas que o rio gera a força que vai alimentar as luzes da cidade.
Eugenio também recorda que o avô se foi há dez anos, num adeus sem sofrimento
do infarto inesperado, passou para a eternidade em viagem iniciada em serena
noite de sono. Com orgulho, saboreia certas observações dos familiares:
- Este seu corpo alto e magro, seu modo de andar, igualzinho ao do seu avô. E
esse topete, com essa onda do seu cabelo para a direita, era marca registrada
dele, não nega que você vem do mesmo sangue...
Só lamenta não ter na sua estante o livrão que ele costumava folhear todas as
noites, Soube que a avó presenteou-o ao melhor amigo dele de encontros
religiosos semanais na sede do Centro Espírita, no lado sul da cidade, aonde o
avô costumava ir com a filha mais nova, Lourdes, atravessando a ponte velha.
Procura não se importar, habituou-se a memorizar aqueles e outros
ensinamentos, atraía-os para os seus pensamentos quando da necessidade de
alguma decisão. Nem sempre fácil, diante da realidade inesperada e imediata de
alguns acontecimentos. Como agora. Na mesa de operações, seu filho, com apenas
quatro anos, está sob a inteligência e habilidade de um cirurgião amigo, que
tenta lhe corrigir uma deficiência cardíaca...
Então simplesmente espera, sentado naquele banco desconfortável. A esposa, ao
lado, pede-lhe o lenço. Nervoso, claro, mas bloqueando ansiedades maiores. Em
suas silenciosas orações não faz promessas místicas, mas traz para dentro de
si o Deus em quem confia e acredita, e que, certamente, irá iluminar as mãos
do médico. Respira fundo, traz o corpo da mulher contra o seu, não pode
esmorecer, nem passar essa impressão.
No final do longo corredor azul do hospital, um relógio maior angustia os
olhos e ouvidos de Eugênio, e, em suas meditações, ele acende mensagem
silenciosa:
- Vovô, vovô Mario, depressa, venha aqui esquentar as mãos de homem deste seu
netinho de antigamente! Onde estiver, benção vô, minha benção...
Rejeita corajosamente a lágrima-desesperança que tenta nascer. De repente,
começa a sentir um frio misterioso, de lento crescimento, e ele acredita que
tenha sido soprado por energias benéficas vindas de outras dimensões.
Sobre o crucifixo de bronze reflete inesperadamente a luz que titubeia na
lâmpada antiga bem defronte. Em baixo dele, a porta da sala de cirurgia
guardando silêncios.
(15 de março/2013)
CooJornal nº 831
Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ
miltonxili@gmail.com
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