Milton Ximenes Lima
UMA CERTA MANHÃ
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Certo é que aconteceu num desses dias em que a gente amanhece
esquizofrenicamente de bem com a vida. Os pulmões se regojizam de ar, os dedos
ensaiam ternuras sobre as cabeças das crianças que brincam, os braços desejam
abraços, da luz do momento fluem energias múltiplas, vontade de fazer muitas
coisas, enfim, o mundo está belo, embora o celeste nublado. Até a paisagem
humana, recentemente desperta, parece atraente, o parque de frondosas árvores
é acolhedor, e o jardim, próximo, nos empresta as variadas cores das suas
flores. Momentos de êxtase para atentos e sensíveis visitantes.
Poderia estar em casa, confortavelmente instalado numa cama ou numa poltrona,
aguardando o aroma gostoso e energizante do café. Deu uma cisma, porém,
resolvi sair, e, de roupas leves e em jejum, comprei o jornal, me acomodei
naquele banco à beira do lago.
Momentos depois, pressenti-me acompanhado. Algo às costas, instinto de defesa
me fez virar. Sorriso a meio caminho, olhos fundos e inchados, rugas na testa
gordurosa, grande nariz, roupa maltratada e suja sobre o corpo, cheiro
desagradável, um homem mostrava-se também interessado na leitura. Deu pequenas
e nervosas risadas e sua mão direita e respectivos dedos, bem por cima do meu
ombro, evoluiram no sentindo de uma notícia:
- Outro atropelado... Foi aqui perto... eu vi, tava bebão!
Balancei a cabeça, murmurei um “hum-hum”, só para concordar, se livrar. É, o
desconhecido sabia ler, devia esconder uma boa história de vida, mexeu
momentaneamente nos meus instintos de curiosidade literária, mas me contive.
Diante da pacífica leitura que até ali eu fazia, ele era, vagabundo ou bêbado,
sei lá, um intrusão. E, logo depois, já ia abusando, apontando outras
ocorrências, fazendo comentários. Desafinei, suavemente:
- O que você quer, cara? Alguma ajuda, um dinheirinho?
- Não, moço, queria só o jornal, tô esperando o senhor jogar fora... –
esclareceu.
De maldade, dei-lhe o suplemento imobiliário. Queria testá-lo, mas, para
surpresa minha, alegrou-se e se afastou, primeiro lentamente, depois, mais
apressadamente, na direção da alameda mais bem arborizada do parque.
Agachou-se, sumiu sob as fartas moitas.
Imediatamente me levantei, dobrei o restante do jornal, joguei-o no grande e
amarelo latão de lixo. Tentei não me impressionar, mas reconheci que todo
aquele romantismo pincelado pela promissora manhã se desvanecera.
Apesar da, instantes depois, inesperada visita do colibri que esverdeou de
malabarismos a janela do meu olhar, antecipando seu mergulho para o
abismo-coração da próxima flor...
Então, quando alcançava o portão do parque, a chuva pediu licença e o peso dos
seus pingos fizeram as folhas, em murmúrios, reclamar...
(10 de agosto/2012)
CooJornal nº 799
Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ
miltonxili@gmail.com
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