Milton Ximenes Lima
PÉS DE MEMÓRIA
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Maracanã em obras, vazado, com Cristo Redentor no "buraco" feito na
arquibancada.
- Foto MXL
A janela do quarto da velha casa, construída
sobre uma encosta, é a recordação primeira. Alto panorama, tornando inúteis os
cercados de tábuas de madeira que o protegiam, o campo do Estrela do Norte
Futebol Clube, que, por sinal, ficava ao sul da cidade e me esverdeava-me o
olhar. Os fins de semana me gratificavam a curiosidade infantil, a
arquibancada cheia, do outro lado, enquanto no campo aqueles homens buscavam,
em correria, a posse da bola que lhes daria a possibilidade de fazer, ou não,
a alegria dos seus torcedores. Simpatizava eu pela camisa mais colorida que
aparecesse. O que me intrigava era aquele jogador (mais tarde saberia que era
um ponta-esquerda) que corria pelo seu setor sempre chupando uma laranja
descascada, laranja (ou laranjas) cedidas pelo vendedor, cômoda e espertamente
instalado em uma das margens de escanteio do gramado, local, também, de
passagem do público para a arquibancada. Nos dias de chuva, acontecia uma bola
enlameada subir demais e carimbar a parede branca da nossa casa. Várias marcas
marrons lá, sem possibilidade de reclamações...
Aquela casa, um dia, não se tornou mais confiável, goteiras cascateavam pelos
cômodos nos grandes temporais. Mudança para o lado norte da cidade de
Cachoeiro de Itapemirim, transposto o rio. Lá, subido o morro, na frente da
velha Matriz, a descoberta dos companheiros de pelada, vizinhos da nova rua,
as balizas delimitadas por pedras, paus e camisas. Brincadeira ingênua,
simples correria atrás da massacrada bola, improvisada ou de borracha. E,
súbito, a atenção é voltada para as vozes altas dos rádios, final da década de
quarenta, Botafogo e Vasco por cima, este, então, cedendo numerosos craques
para a seleção brasileira. Depois me assustei com aquela tristeza da perda da
Copa do Mundo de 1950, não entendi bem a emoção do envolvimento daquelas
pessoas apaixonadas e, até, chorosas. Momento certo para adotar um clube.
O Rio de Janeiro, onde iria estudar, me fez melhor compreender tais
sentimentos. A garotada do bairro, Vila Isabel, lá pelos lados do Corpo de
Bombeiros, era dedicada, as manhãs de domingo eram para maltratar alegremente
os pés naquele irregular campo de terra.
Eu era ruim paca, e, para assumir pouca responsabilidade, me situava no meio
do campo. Se estava em movimento de defesa, era só despachar a “menina” lá prá
frente; se em de ataque, era correr e, se possível, chutar para a meta. Quando
chutasse! O gol feito era surpresa prá mim, tinha muita gente fominha... Outras
vezes me fiz de goleiro, até bem, fiquei convencido, mas era franzino, e, nos
jogos com outros, já rapazes mais taludos, vinham os companheiros
maneirosamente me convencer a ceder o lugar: “- Bola sobre a área, aquele
pessoal vai te empurrar com couro e tudo para dentro do gol!” Tinham razão, já
acontecera até no colégio, quando tínhamos que enfrentar os empregados da
cozinha e da faxina, homens criados.
Pelas mãos do meu tio flamenguista, meu coração vascaíno foi apresentado ao
Maracanã, me viciei, ia com ele ou com companheiros de pelada, sempre um pai
responsável ao lado. O problema era sentar na arquibancada da torcida do
próprio clube, havia a divisão do grupo, promessa de se encontrar em
determinado ponto após o jogo, mas saíamos todos felizes vendo atuar os
jogadores que a gente tanto admirava e tentava imitar.
E então chegaram a televisão, a vida adulta, as responsabilidades de uma
família e de um trabalho, este com o detalhe de me obrigar a constantes
viagens pelo Brasil. Correria imensa, só me davam a alegria de,
coincidentemente, conhecer clubes e estádios de outros Estados. Depois, todos
sabem, o abandono do nosso estádio maior, sua insegurança, torcidas violentas.
Certa vez, em jogo clássico, tive que correr, nas arquibancadas, ao sabor da
onda da multidão, contra o gradil que as separava da tribuna de honra.
Sensação desagradável da ameaça de ser imprensado, a não ser que o pulasse.
Felizmente, parou bem perto. Em outra, senti e vi uma garrafa-voadora de
cerveja passar por sobre a minha cabeça e acertar o pescoço do torcedor
sentado à minha frente, no degrau inferior. O homem, mão direita na nuca,
radinho de pilha na outra, levantou-se, tonto, perguntando aos vizinhos o que
acontecera, e só quando a mão lhe revelou um líquido vermelho é que se
assustou. A sorte foi a garrafa atingi-lo em posição deitada, na horizontal!
Outro sacrifício: comprar um ingresso, na hora, nos grandes jogos! A pressão
física, agressões, o desrespeito pela ordem, polícia distante...
Mais idoso agora, penso muito, me cerco de confortos. Pela televisão estou em
todos os gramados do mundo, principalmente vendo os estragos que os sacanas
jogadores brasileiros fazem no orgulho dos estrangeiros... São pentas com
muito merecimento, o sofrido povo brasileiro, pelo menos, pode curtir essa
alegria, conquista que carrega no patriótico e estufado peito... Mas, cá
entre nós, está difícil engolir nossos timecos por aqui... Que saudade do
tempo daqueles campeonatos cariocas repletos de craques nos surpreendendo e
nos alegrando com suas jogadas, recheando os campos com muitos torcedores em
quase todos os jogos!
Meus dois filhos entram na sala, interrompem meus cochilados pensamentos, após
um bom almoço. Querem que os acompanhe no jogo da semifinal do campeonato
carioca, digo-lhes que se divirtam sozinhos, não arrastem esse velho pai, já
meio trambolho, meio caduco. Eles me censuram, que me levam de carro, que me
levam, com jeito até a arquibancada....
Sempre exageram a atenção para comigo, principalmente depois daquela tarde,
após a manhã de aborrecimento com a mãe deles, ela sempre me reclamando do seu
abandono nos fins de semana por causa das minhas manias futebolísticas. Então,
depois de um almoço intranqüilo em família, na estrada, a caminho de um
estádio naquela cidade do interior, uma leve sonolência interferiu em meus
sentidos, minhas mãos deixaram de dominar momentaneamente o volante, e o
automóvel seguiu para uma direção não aconselhada, nem desejável...
Agora, estão aí, alguns ossos quebrados, esta minha perna e seu pé direito,
justamente o do melhor chute, que teimam em não mais me obedecer...
(27 de julho/2012)
CooJornal nº 797
Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ
miltonxili@gmail.com
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