Foto MXL
Sentiu que haveria uma festa em família.
Inesperada, uma confraternização para comemorar ele não sabia o quê. Talvez
só para a turma se reunir, se rever. A quem o convidou, prometeu ir,
esclarecendo que, antes, teria que cumprir um compromisso no centro da
cidade. Retornaria, era certo, a tempo.
Lá, na saída do táxi, dois
homens, trajados em elegantes ternos, o cercaram, um deles logo lhe
apresentou uma carteira tipo funcional, tipo de autoridade mais federal que
policial comum. Um deles se afastou, o outro o conduziu para um carro
estacionado próximo, ofereceu-lhe o banco de trás, e se aboletou no do
carona. Carro em movimento, permitiu-se indagações sobre a razão daquilo
tudo. Exame de consciência. Nada a temer em sua vida pessoal, profissional,
comercial, tributária e outros bichos... O homem, com uma cara mais para o
cinematográfico ator americano Will Smith, se negou a responder-lhe as
perguntas, nem se virou para encará-lo. Então pensou: nem vai perceber se
atacá-lo por detrás, uma chave bem dada no seu pescoço, puxando-o para trás
com todo o peso do meu corpo. Só pensou, porque não era do seu feitio a
alternativa imediata de qualquer violência. E, além do mais, aconteceu a
freada que assustou a todos, fez o homem exibir seu revólver, apontando-o
para a calçada à sua direita. A arma falhou. O motorista acelerou e o
veículo submergiu na escuridão à sua frente.
Ele se indagou
novamente. O que estou fazendo aqui, levado para um lugar que nem sei onde
é? E a festa, meu Deus! Tenho que avisar à família! Mas como? Ansiedades vão
chegando, crescendo, agitando-lhe os pensamentos.
Acordou. Acordou
infeliz, visualizou, ao lado, o adormecido corpo da esposa, delicadamente
sentou-se à beirada da cama, fez o costumeiro sinal da cruz, e se encaminhou
para o banheiro da suíte.
Mais tarde, numa solitária meditação,
catalogou pensamentos e emoções da semana anterior... Acreditou em conexões.
Sim, pensara realmente em planejar uma festa para os seus setenta anos, mas
um problema de saúde de pessoa muito próxima lhe impedira de levar adiante a
idéia. Depois, numa noite, se deparou, no computador, com uma mensagem em
spam do Tribunal Regional do Trabalho notificando-o para comparecimento no
dia tal e tal hora – falsa, como tantas outras anteriormente recebidas, do
Tribunal Regional Eleitoral, da Receita Federal, Caixa Econômica, Bancos,
mas que, a princípio, fizeram saltar na sua imaginação indagações negativas.
O rosto do artista americano, por outro lado, era projeção da sua frustração
de não retirar da locadora um badalado filme dele, porque não teria tempo de
vê-lo no agitado fim de semana que se anunciava. Dois dias depois, o seu
cartão de gratuidade caiu no chão do ônibus e o tempo gasto para resgatá-lo,
por causa dos bruscos movimentos do veículo, foi superior ao permitido à
passagem na catraca, que, então, lhe bloqueou o corpo. A cara decepcionada
do trocador lhe parecia sugerir: passar por cima da roleta ou pagar uma
passagem. Permaneceu teimosamente na frente, evitando discussões com o moço,
que já começara a reclamar da sua inércia naquele espaço. Resolveu: sairia
pela porta em que subira. Assim, graças, também entendeu e concordou o
motorista, depois de lhe pedir para encostar o cartão num dispositivo
grudado no meio do para-brisa. E, enfim, à noite de uma quarta-feira, lá
perto das dezoito horas, absorto em seu trabalho, não entendeu as palavras
do último funcionário a deixar a repartição (“Você tem a chave daqui?”). Não
tinha, ficou trancado. A imediata solução: consultadas anotações pessoais,
disparou um festival de telefonemas, prejudicados, inicialmente, pelas
ausências pessoais e técnicas das pessoas chamadas. Deixou recados. Sabia,
também, que alguém, ali, tinha, à mesa, uma cópia da chave de uma das
saídas, mas as encontradas não se casavam com a fechadura. Usou números de
celulares, deixou outros recados. E cerca de quarenta minutos depois
apareceu um dos Diretores, que viera apanhar um documento para embasar sua
posição na reunião no dia seguinte, se espantou com sua presença, brincou
com a situação. O celular dele abriu caminhos, recebendo chamadas de todos
que tentavam se comunicar para dizer onde se encontrava a tal chave, e não o
conseguiam porque o telefone ali era de ramal e tocava longe do local onde
ele se encontrava. Nesta altura, até uma colega desistiu do táxi que
encomendara para ir socorrê-lo, já avisada pelos outros da chegada do
Diretor. Na verdade, durante todo o acontecimento, ele ficou tenso na busca
de uma saída, mas não necessariamente nervoso, porque tinha a certeza de que
Alguém, ao final, chegaria até ali.
Uma festa (aniversário), uma
ameaça (e.mail), uma frustração (o filme não assistido), uma possibilidade
de confronto (trocador), outra de aprisionamento (o abandono na repartição),
todos eles acontecimentos com diversas emoções captadas, registradas e não
digeridas adequadamente pelo subconsciente. Há perspectivas de uma ligação,
uma interpretação? Ele analisa e tenta esboçar uma resposta: - Talvez...
Como humanos e diretamente interessados, podemos até falhar nesta análise,
mas, juntando o real e o irreal dos anteriores comportamentos, ele tem quase
a certeza de que os sonhos são, ao final, macios travesseiros psicológicos
para nossas preocupações não administradas. Eles tentam, simbólica ou
diretamente, relembrar nossas angústias momentâneas e acariciá-las, nos dias
e meses seguintes, com a anestesia do tempo - um dos caminhos para
superá-las e, desse modo, alcançarmos uma possível tranqüilidade
existencial.
(RT, 3 de julho/2012)
CooJornal nº 795
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miltonxili@hotmail.com
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