Foi uma lembrança da minha prima, tempos depois, na festa
de aniversário de uma tia, que me fez recordar.
- Te vi um dia na rua
Gonçalves Dias... Que morenaça você rebocava!... Cadê a menina?
Disse-lhe a verdade:
- Sabe que não sei? Durou pouco o chamego, não
deu nem pra grudar, era meio complicada...
Não mais esclareci,
interrompidos que fomos por cumprimentos de parentes que chegavam e nos
arrastavam para cantos diversos da residência espaçosa.
Verdade é que
a história se passou há muito, em tempos mais românticos, e, ao final,
deixou no ar, a princípio, um sabor de mistério para quem não a acompanhasse
em detalhes. Mistério-mulher...
Centro da cidade do Rio de Janeiro.
Das janelas laterais do sétimo andar do prédio da empresa em que
trabalhávamos, defrontávamos com as do fundo de outro edifício, e
descobrimos, no nono andar, as mulheres nelas debruçadas, provavelmente em
hora de almoço. Começava, então, a nossa brincadeira, o chamado namoro
espacial, troca de gestos os mais diversos na busca final dos números dos
telefones delas.
Foto MXL (Centro da cidade)
Interessei-me por uma, morena. Um colega tentou me alertar:
- Ela é
bonitinha, eu já conheço ela pessoalmente, mas é meio esquisitinha. O nome
dela é Aline. Tentei engatar um namoro, marquei um sábado para passear no
Aterro do Flamengo. Depois de uma conversa longa, de uma troca de carinhos,
ela se afastou e me jogou esta:
- Afinal, o que você quer de mim,
hein?
- Engrossou, fugiu para o ponto de ônibus. E ponto final pra
mim também, não fui atrás da doidona - ele concluiu.
Apesar desta
história, insisti nos telefonemas e, certa tarde, me vi a desfilar pela rua
Gonçalves Dias ao lado daquela garota, morena-chocolate, cabelos lisos
descansando sobre os ombros, olhos com traços orientais, nariz suave, boca
sempre entreaberta, convidativa. Não muito alta, fazia o meu gosto, um corpo
magro, na medida do contorno dos meus braços.
Foi ela quem me
clareou, só poderia me encontrar às quartas-feiras, após o trabalho e, de
preferência, em praça perto do centro da cidade. Morava em subúrbio
distante, Marechal Hermes, mas naquelas quartas poderia pernoitar na casa da
irmã, em Copacabana.
Assim foi. Numa dessas, ao entardecer, nos
refugiamos junto à do Aeroporto Santos Dumont e, sentados no banco de
cimento, começamos a nos decifrar, a deixar sair de nós as emoções que nos
tinham aproximado. Entre beijos, ela, em certo momento, deixou escapar:
- Puxa vida, logo agora?
Foto MXL (Aeroporto Santos Dumont)
Não falei nada, ela quis ir logo para a casa da irmã. Toquei-me,
depois, que a feminina natureza lhe pregara inoportuna peça. Mudamos o local
dos nossos amassos, enfrentando os ônibus e descendo perto da casa da irmã.
Não se falava, naquele tempo, em ficar com, motel era palavra desconhecida,
os privilegiados eram os homens que tinham carro, ou dinheiro para o refúgio
nos escondidinhos hotéis do centro antigo da cidade. No mais, era recorrer
aos balanços estratégicos das músicas e danças dos bailes mela-cuecas, que
eram muitos. Aos escurinhos coniventes dos cinemas. Então, o que nos
gratificavam, beijos prolongados, artísticas mãos em explorações deliciosas
a recantos íntimos dos corpos, e outras descobertas naturais do desejo
aprisionado, tinham que acontecer sob a escuridão daquela mesma frondosa e
abençoada árvore.
Foto MXL (Copacabana)
No quinto
encontro, ela não me deixou acompanhá-la na subida ao costumeiro ônibus para
Copacabana... Afobadamente me passou um pedaço de papel dobrado, pedindo
para não mais telefonar-lhe. E se foi. Surpresos, incrédulos, meus olhos se
debruçaram sobre sua escrita simples e inclinada à direita: “O que você quer
de mim? Não me procure mais”.
Coisa esquisita mesmo! Não fora uma
atitude precipitada, fora premeditada. Claro que não fiquei satisfeito com a
inesperada despedida!... Algum mistério havia no gesto dela. Além do mais,
tinha necessidade de revê-la e reavê-la, gostava da rara companhia dela,
tinha, na verdade, uma química com o seu corpo, meus sentidos vibravam
quando ela se aproximava, suas mãos carinhosamente buscando as minhas.
Ainda, bem verdade, não era um amor integral, mas poderia chegar lá. Questão
de tempo, talvez ao se abrandar o inicial e forte enfeitiçamento sensual.
Procurei não contar este desfecho ao colega de trabalho, para não dar
razão e satisfação às suas proféticas palavras. Resolvi então telefonar para
o emprego dela, insisti para que a chamassem. Uma voz feminina atendeu, quis
saber quem era. Quando me identifiquei, vieram as pedradas vocais, sem
respeitar as tentativas de defender-me das atitudes que a mulher me acusava:
- Quer parar de perseguir a Aline? Quer deixar a Aline em paz? Ela pediu
licença e vai se casar no fim do mês!... Não telefone mais! - e desligou
agressivamente.
Era verdade. Quase um ano depois a vi na rua Álvaro
Alvim, também centro da cidade, aninhando-se no braço de um forte senhor de
cabelos brancos, grossa aliança dourada se exibindo no dedo específico.
Quando me viu, forçou o marido a trocar de calçada.
Como ninguém se
machucou, ou melhor, como nossas brincadeiras não deixaram raízes que
alcançassem responsabilidades posteriores, só me restou, em pensamentos,
desejar-lhe muitas felicidades. Contrariado, mas lhe desejei. Parece que fui
a livre despedida sentimental da solteira e possivelmente noiva, Aline. Se
gostou, jamais esquecerá.
(RT, 29 de junho/2012)
CooJornal nº 793
Premiado na categoria “Destaques”, no Concurso
de Contos Claudionor Ribeiro da Academia Cachoeirense de Letras (ES),
2003
Comentários podem ser enviados diretamente ao autor no email
miltonxili@hotmail.com
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