A Raul Castiço Loureiro, meu tio, que, substituindo meu falecido pai, me
ensinou os primeiros “nós”
Abriu a porta do guarda-roupa do pai e
escolheu a gravata que mais lhe agradara, a vermelha com listras azuis, tons
fosforescentes. Ali mesmo, no espelho, começou a criar o nó. Muito acima do
umbigo, negativo... Desmanchou, partiu para outra tentativa, ficou lá
embaixo... Não tinha muita paciência com o troço. Invenção besta esta dos
homens, se enforcando socialmente com esses panos! Vez em quando lhe dava
uma preguicite, não desmanchava os nós, tirava cuidadosamente a gravata pela
cabeça, a pendurava assim mesmo no cabide dos ternos. Quando precisasse, era
só encaixar no gogó.
Agora, porém, caprichava, pois, pela primeira
vez, seu pai lhe dava a oportunidade de ajudá-lo. Pensava naquele homem
distante, misterioso, que era o pai, aquele mesmo que lhe ensinara a dar o
primeiro nó quando ainda moravam na velha casa, do outro lado do rio.
Lembrava-se bem. Rapazinho, já caçava no rosto os primeiros pelos da
futura e cerrada barba, quando precisou colocar a gravata. Os amigos
esperavam na calçada, e ele, ali, na luta com a possibilidade de um
perfeccionista laço, e a pressa do momento mais o enervando. Já desanimava
quando, pelo espelho, viu o pai se aproximando. Ele parou, examinou
primeiramente sua roupa, perguntou, seco:
- Onde é a festa?
- Na casa
dos Madureira – respondeu.
- Ahnn... e a que horas acaba?
- Não tem
hora, vai até a turma desanimar...
- Aí é que se engana, garoto. Ninguém
aqui vai ficar acordado esperando sua chegada. Vê se volta às onze!
- Mas
pai, a essa hora a festa ainda nem esquentou!
- Então, você vai ficar na
rua...
- Calado ficou, a vivência assim o ensinara, e, também, em certos
momentos, sabia que a mãe era cúmplice na solução desses tipos de problema.
O pai prosseguiu:
- E desocupe o banheiro, que preciso dele!
Suplicou:
- Um momento só, pai, um momento só, não acerto o nó dessa gravata!
Aí, a surpresa: o pai fez o laço, embora não o da moda. Quando quis
agradecer, ele já havia fechado a porta do banheiro. Homem estranho, não
gostava de muita intimidade, nem de ajuda de ninguém, parecia que se
constrangia ao expressar seus sentimentos. Subira sozinho na vida, lutara
muito para se estabelecer num negócio de café, capital próprio, sócio era a
palavra que não figurava no seu dicionário...
A voz da irmã tirou-o
das recordações:
- Anda aí Tonho, só falta botar a gravata!
Foi
com ela para o quarto, os dois se ajudaram e colocaram a gravata no pai,
cujo rosto, remoçado, aparentava uma paz jamais sentida. Mediu-o da cabeça
aos pés, lá estava o velho, muito elegante, terno e sapatos praticamente
novos, testemunhas apenas dos grandes acontecimentos da cidade ou da
família.
Ao retornar à sala principal da casa cruzou com os homens
que traziam o caixão. Estremeceu, sentiu verdadeiramente o grande momento da
perda e, quando a mãe lhe tocou suavemente os ombros, suas defesas se
fragilizaram, ele fugiu para o quintal e, sob a amendoeira de tantas
recordações familiares, deixou-se ficar em prantos.
As lágrimas
secaram. Ficou-lhe apenas um nó, um tenso nó na garganta, que aprisionou em
seu corpo o silêncio do seu sofrimento, por muito tempo captado ao vestir
seus futuros ternos.
Premiado na categoria “Destaques”, no Concurso
de Contos Claudionor Ribeiro da Academia Cachoeirense de Letras (ES),
2003
(RT, 04 de maio/2012) CooJornal nº 785
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miltonxili@hotmail.com
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