Noite, bem tarde. Madrugada à vista. Terminara, enfim, a
redação e montagem da reportagem que lhe fora confiada naquele dia.
Despede-se dos companheiros de trabalho. Cansado, mas sem sono, lhe vem a
vontade de rondar bares e inferninhos próximos, ali pela boêmia Lapa,
reencontrar aquelas meninas. Gostavam dele porque as ouvia sempre e
pacientemente. Era seu jeito de ser, mais cultivado depois na profissão de
repórter. Uma delas, toda atenção, toda carinho, de graça, e, perigo,
sonhando com compromissos...
Mas naquela madrugada viu e sentiu
coisas diferentes naquele mesmíssimo quarto, isolado, no final do corredor.
Ele se adiantou na cama, esperando-a, só que de barriga para cima... Ela
veio de mansinho, montou, iniciou aqueles movimentos sábios por ele tão
ansiados e apreciados, prazer crescendo devagar, ele curtindo tudo com os
olhos calmamente fechados...
De repente, o susto com a alta voz, em
tom ameaçador, da mulher:
- Vou te matar hoje, seu desgraçado, seu
merda!
Na mão direita, a navalha, que ela pressionou contra seu
pescoço. Morreu-lhe o sexo, não podia se mexer, já que as pernas gordas e
fortes dela prendiam lateralmente o seu corpo, e ainda mais aquele peso,
todo em cima. Lâmina trêmula coçava-lhe a pele, bem debaixo do seu queixo.
Devagar, suspirou um pedido de explicação:
- Clara, minha Clarita, o
que que houve contigo? Tá maluca?
- Tô maluca, não!... Tô te esperando
há três noites!
- Mas eu não combinei nada contigo!
- Cala a
boca! Teve aqui, não me encontrou, e foi dormir com a Laurita! Não é
verdade? Me diga se é mentira!
- Pera aí, pera aí, vou falar, vou lhe
explicar! Eu vim aqui, sim... é verdade! Mas vim ver você, mas você não
aparecia!
- É... mas aqui amigo meu não pode ser de outra!
-
Mas, minha gata, esperei você muito tempo, bebi à beça até de madrugada!
Pode perguntar ao pessoal aí! E olha, foi a primeira vez que isto aconteceu!
- Primeira e última, seu sacana! Ninguém me engana assim!
- Fique
fria, amor... Tenha confiança em mim, não vai se repetir, eu estava muito
bebão! Olha só, não estou aqui com você? Vai adiantar prá você me matar? Não
faça essa besteira, você ainda vai se sujar, atrasar sua vida e a do seu
filho. E, aqui entre nós, não vamos terminar assim nossa boa amizade! E há
quanto tempo nos conhecemos! E sem problemas até hoje!
Clara (Edméia,
de “guerra”) vacilou, foi perdendo energia, começou a choramingar, depois
mergulhou em soluços de pranto maior. A navalha escorregou-lhe mansamente da
mão. Ela se inclinou, e, de repente, festejou-lhe o rosto com sucessivos e
fortes beijos, enquanto lhe revelava:
- Maldita hora que me apaixonei
por esses seus olhos azuis! Não me deixe nunca, eu gosto muito de você, não
me troque mais...
Muito tempo permaneceram silenciosamente abraçados.
Depois, o bailado das palavras mansas, das carícias várias, e dos olhares
ternos e cúmplices cativou a mulher, que se deixou abandonar sobre o
desarrumado leito, posição encolhida, quase fetal.
Na rua, enfim!
Graças! Respirações profundas de alívio, o início da certeza de que nunca
mais pisaria por aquelas bandas.
Mãos ainda levemente trêmulas,
Henrique abre a porta do quarto da pensão, a luz da lâmpada lhe revela um
telegrama lá no chão. Recolhe-o, senta-se pesadamente à borda da cama,
rasga-o. O olhar se perde na direção do teto, crescem na sua imaginação
pensamentos divididos. Era da Rita, sua adolescente noivinha lá de Cachoeiro
de Itapemirim. Chegaria no dia seguinte, pela manhã. Vinha passar uma semana
na casa de uma prima, lá em Vila Isabel, esticaria até o Carnaval...
Desaba, agora sim, seu cansaço sobre a cama. Preguiça enorme de tirar a
roupa, um sono pesado a envolvê-lo. Para além da claridade aprisionada entre
as frestas das persianas e das janelas, a cidade começa a se espreguiçar,
mas os ruídos e rugidos das ruas vão lhe ficando longe, cada vez mais
longe...
(RT, 01 de março/2012) CooJornal nº 776
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