Cabeça-de-porco. No fundo da estreita rua da vila “Villa
Brasil”, lado esquerdo, Luiz empurra a porta do quarto-sala-cozinha, e a
claridade se projeta sobre o corpo magro de Isa, de pé, à beira do fogão,
mão direita a remexer, sob brandas chamas, uma papa branca na pequena e
amassada panela. Ao fundo, a criança se distrai, na desarrumada cama do
casal, com restos de brinquedos.
Nem dizer a ela como arranjara
aquele cacho de bananas e aquela caixa de aveia! Ofereceu, e mentiu:
- Pendurei isto na venda do seu Fernando, ele disse que aguentava até o fim
desse mês...
As narinas da mulher, porém, aspiram um certo
encervejamento no ar, tem vontade de falar, mas sabe que logo vem atrito,
não dá em nada, o companheiro sempre bate a porta e só retorna tarde da
noite, cheirando mais ainda. Apenas:
- Arranjou algum lugar por aí?
- Tá ruim... só uma vaga pra pedreiro, mas pediram pra voltar na segunda
que vem...
- Mas eu tenho novidade, Lu...
- Que é, mais uma
faxina?
- Nada disso, falei com a Rutinha, nossa vizinha aí da
frente. Vou fazer o que a mulherada daqui anda fazendo, vou pras filas dos
sacos de feijão, arroz e outras coisas nas portas das igrejas, e de onde
tiver...
Luiz observa, primeiro:
- E esse machucado seu aí na
perna, coçando, coçando, tá ficando grande. O moço da farmácia falou pra
você descansar, que só pomada não vai secar...
- Se avexe não, Lu,
melhorei da dor, já posso ir!
Ele não gosta, está desapontado porque
nada pode oferecer, fecha a cara. Nem dissera a ela que já entrara, mais de
uma vez, na fila de um real do almoço do governador José Menininho.
Isa, porém, ainda lhe adoça a preocupação:
- Mas Lu, tá tudo difícil
pra todo mundo! A gente nem vai ser o primeiro, a calçada fica logo cheia de
gente, só tenho é que chegar cedo... E olha, Lu, é só até você ter um
emprego certinho...
Luiz resiste em concordar, mas põe limite:
- Mas veja lá... arranje uma igreja longe daqui, tá bem? Esse pessoal
daqui fala muito, se te vê, espalha tudo...
Muitas semanas mais tarde,
situação inalterada, uns bicos por aí, ele fica observando o filho
adormecido. Pergunta:
- Como tá o menino? Melhorou da gripe?
-
Graças a Deus! Agora tá com o corpo melhor, perninhas agitadas, parou de
engatinhar. Tá se segurando nas paredes, vai andando e caindo por aí... Mexe
em tudo! Nem quer saber mais do berço, tá fazendo manha toda hora pra ir pro
chão.
Sorriso sem entusiasmo, olhar para lugar qualquer. Mão direita,
com cicatriz no dorso, acidente numa obra. Mexendo nos cabelos, Luiz já está
somando e diminuindo esperanças, imaginando como pagar ao dono do quarto no
fim do mês.
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25 de março de 2004, quinta-feira-feira , à tarde
Saio mais cedo
do trabalho, tenho que passar, antes, na casa de um amigo, convalescente de
melindrosa cirurgia, e o ônibus que tive que escolher passa na rua Salvador
de Sá, no velho bairro do Estácio, Rio de Janeiro. Na parada em um ponto,
descubro, na entrada de uma vila, de nome “Villa Brasil”, o cartaz de
papelão pardo amarrado na parte superior do portão de madeira do velho
prédio, onde letras tortas e azuis – o S invertido formando quase um Z -
gritam uma decisão e um oferecimento a respeito de um conforto já sem
serventia: VENDE-SE UM BERÇO. TRATAR AQUI.
E este apelo do até então
inominado casal me comove, se insinua, de repente, no meu cérebro, belisca
minha sensibilidade de cidadão, sacode minha imaginação política, me faz
apressar o parto desta brasileira história. Salto no próximo ponto,
retrocedo, chego até o casal, começo a tratar do preço. Enfim, combino com
eles:
- Amanhã venho com o dinheiro, e apanhar o berço, e depois vou
levar você, Luiz, para se inscrever no cadastro do bolsa-família...
(RT, 03 de fevereiro/2012) CooJornal nº
772
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miltonxili@hotmail.com
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