Foto MXL
À noite sonhamos
Nem sempre. Já ganharam a
experiência de viajar nos ônibus-leitos? Ser premiado com um vizinho
tagarela? Teve um que me desabou toda sua sabedoria sobre mecânica de
automóvel, logo eu que sonhava, poeticamente, com minha chegada em Cachoeiro
de Itapemirim, no dia seguinte. E com um caboclo-roncador? E aqueles que têm a
cabeça-pêndulo e que, em sono profundo, teimam em gentilmente se aconchegar no
nosso respeitável ombro? Se for homem, não tem nem diálogo, o jeito é, com uma
forte “ombrada”, jogar sua cabeça para o outro lado.
Direitos e
obrigações
É desejar muito que tenham todos melhor nível de educação,
mas desconfiômetro sempre é bem recebido. Como em certa viagem longa e
cansativa, de Camboriú para o Rio, depois de uma cerimônia de ordenação
sacerdotal de um sobrinho, em que o passageiro teimou em deixar sua luz
individual acesa para mergulhar em grosso livro que me pareceu uma bíblia ou
um livro de formato e formação teológica. A claridade era forte, alcançava
nosso banco, à direita. Minha mulher começou a reclamar, dei-lhe razão, a
gente tinha que se virar para o lado da janela, puxando o cobertor sobre a
cabeça. Posição incômoda, não era para isto que tínhamos comprado aquele
conforto. Entre cochilos, começamos a reclamar em voz mais alta. Nada.
Aproveitei a parada do jantar em Curitiba, conversei com o motorista para
intervir. Ele não disse nem sim nem não, passou a impressão de que não queria
ser antipático a qualquer passageiro. No reinício da viagem, a luz foi
apagada. Graças! Mas às 5h30 da manhã ela reapareceu... o homem
debruçou-se novamente na leitura. Na estação final, identifico-o melhor, um
padre com vestimenta “clergy-man”. Certamente pensando mais no paraíso do que
na terra, mais nos anjos do que seus fiéis daqui deste mundo...
Desculpas
Relembro meu falecido sogro que costumava viajar
profissionalmente de ônibus noturno do Rio para Governador Valadares, onde
substituía, nas férias, o gerente de uma firma do comércio de pedras. Quando
ao seu lado se aboletava um companheiro conversador, cortava:
- Mim não
entender português...
Puxava a aba do boné sobre os olhos e virava a cabeça
para o outro lado, sono garantido...
Uma das últimas
Em viagem
do Rio para Cachoeiro, junho de 2005. No banco “executivo” à minha frente, o
“garotão”, cheio de saúde e inquieto, após sentar-se, tomou logo a primeira
providência: escancarou as cortinas da janela lado a lado. Quase ao mesmo
tempo, do outro lado do corredor, no “leito”, a mocinha bonitinha o imitou.
Deviam ser boêmios ou claustrófobos. As luzes externas invadiam e relampeavam
a parte do meio do ônibus, incomodavam o olhar. E, por incrível que pareça,
ele acavalou sobre o nariz um óculos de lentes... escuras(?!) com hastes
brancas, da moda... Depois se mudou para um leito vago, lá também abriu as
cortinas. Criei e ansiei por uma oportunidade, deixei-o cochilar, fechei as
cortinas do meu lado. Também dei uma puxada nas da mocinha, agora mergulhada
em profundo sono. Na alta madrugada ele retornou ao banco original, mas não
mexeu em mais nada. Graças! Ainda, no retorno ao Rio, enfrentei um grupo quase
uniformizado de homens de crachá instalado nos fundos do ônibus, próximo ao
banheiro, à geladeira e o café. Cheiravam a Simpósio, porque matraquearam suas
temáticas até alta hora. Tanta gente, não tive como enfrentá-los a não ser... desligando... meus aparelhos auditivos! Indesejada, mas “santa” surdez!
Sem querer
Também já perturbei. Possivelmente entre as décadas de
50 e 60, a Ponte Rio-Niterói ainda não construída, os ônibus, ou atravessavam
a baía da Guanabara através de balsas ou a contornavam, via Magé. Tempos em
que, também, o trecho entre a divisa do Espírito Santo e Campos era de terra
batida, lama pura nas chuvaradas, veículos puxados por tratores. Bem, meu
vizinho lembrava um coronel de interior, chapéu elegante e impecável terno
branco. De repente, o vi limpar-se de um pozinho preto. Não havia ônibus
refrigerado, as janelas ficavam abertas para arejar. Esclareci-lhe que aquela
sujeirinha era da poluição da Avenida Brasil, mais adiante aquilo iria acabar.
Mas entramos na rodovia de Magé e aquele pozinho a cair... De repente, saquei,
e sem que ele notasse, fui mexer na minha bagagem de mão, em cima das nossas
cabeças. Mexi, remexi, apertei, amarrei, voltei ao banco e nada mais
aconteceu. Ainda bem que me lembrei daqueles dois pacotes de café, um quilo
cada um, que minha tia-avó, funcionária do Instituto Brasileiro do Café (IBC),
mandara de presente para minha mãe!
A solução
Para o problema da
convivência nesses ônibus noturnos especiais, seria oportuno o motorista
acrescentar às costumeiras palavras de boas vindas que profere antes de
começar seu trabalho, outras que “lembrassem” aos viajantes a razão de ser
daquele noturno ônibus, repleto de macios leitos e confortáveis cadeiras tipo
executivo, travesseiros e cobertores higienizados, pacotinhos de biscoitos ou
bombons sobre as poltronas. Isto não impediria, claro, que, numa noite
qualquer, um chato insone, possivelmente um bacharel em ciências ocultas e
letras apagadas, alegasse direitos individuais constitucionais derrapados
etc... aí aquelas lembranças iniciais do motorista “enguiçariam” nas longas
estradas judiciais! Durmam, se possível, com mais este desconforto no
solavanco da viagem existencial!
(Revista Rio Total, Ano 14,
CooJornal nº 742,
01 de julho/2011)
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miltonxili@hotmail.com
Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ
miltonxili@gmail.com
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