Foto MXL
Descida em São Paulo, revisão técnica. Depois,
em voo novamente, almoço, tudo tranquilo sobre nuvens intercaladas que, em
desafio ao sol, sombreavam espaços de plantações, casas, estradas, lagunas,
rios e montanhas de matizes várias. Assim, no ar, pousa em meus sentidos a
sensação fictícia de imponderabilidade, de inércia, apenas negada pelo
movimento das nuvens e pela passagem da terra, lá embaixo, onde a presença
do ser humano era somente adivinhada. O horizonte, o infinito horizonte, não
abandona seu azul claro. A Terra é azul, sentenciou o russo Gagarin,
astronauta privilegiado pelas cores do alto espaço... Ao mesmo tempo, também
o pensamento da inutilidade dos gestos humanos se algo fatal ocorresse
àquele imenso avião. O preciso e exato significado do “estar nas mãos de
Deus”, apesar da presumida certeza da segurança tecnológica. Por isso, antes
mesmo da decolagem, muitos não resistiram a um envergonhado sinal da cruz,
minha vizinha mergulhou num livrinho de manuscritas orações, outros mexiam
disfarçadamente os lábios, em íntimas súplicas.
A memória, depois, me
volta, registra descompromissada conversa que mantive certa manhã com um
anônimo representante farmacêutico, enquanto esperávamos a lavagem dos
nossos automóveis, no Rio. Seu dilema vital: fazer o que gostava e, por
outro lado, fazer, por necessidade, suas obrigações profissionais.
Deslocar-se para as cidades interioranas, mãos no volante por estradas
desconfortáveis, enquanto sua cabeça buscava tempo para materializar seu
sonho real, ser piloto civil. Era responsável, trabalhava por causa da
família, mas chegando a Campos, onde ela se encontrava, aproveitava para
atualizar suas aulas. Sob as censuras da mulher... Descreveu-me o êxtase que
o envolvia, o embriagava, quando, do alto, seu olhar saboreava as diversas
paisagens: os canaviais, as fazendas, as cidades e vilas, os rios, os
litorais, a variedade das cores dos fundos dos lagos e do mar, e, ao mesmo
tempo, media a pequenez física e a imensa solidão do homem. Vinha-lhe,
então, a posse integral de um bem-estar, como um caminho para um estágio
espiritual mais elevado...
É isto mesmo, confirmo agora, sentado
nesta poltrona à beira da janela, com a diferença que ele era um piloto
solitário, colocava o avião no rumo seguro e desejado, soltava a mão dos
comandos para apreciar a paisagem, a imaginação a pairar em suaves
contemplações, de bem consigo e com o mundo, mesmo sendo uma fuga interior,
enquanto que os passageiros, aqui, principalmente os de primeira viagem,
fora o controle psicológico pessoal, tinham a confiança na tranqüilidade,
não só do comandante da aeronave, como também na da treinada tripulação.
Não é por menos que o espaço fecundou seu principal poeta, a nos
lecionar opções de vida com suas meditações silenciosas embebidas em
verdades filosóficas derramadas pelas páginas de Piloto de Guerra, Correio
do Sul, Vôo Noturno, Terra dos Homens. Pioneiro, adentrando em primitivos
aparelhos, cruzando o Mediterrâneo, os desertos da África, o imenso
Atlântico, Antoine de Saint Exupery acendia no seu cérebro poeiras de idéias
sobre a solidão, as alegrias e as tristezas dos homens, tão lá embaixo, tão
distantes, tão pequeninos e abandonados.
Depois dele, outro filósofo
a se apresentar, a nos descrever a saga heróica de Fernão Capello Gaivota, a
gaivota inconformada, desafiante do seu rotineiro bando, optando por um
destino próprio, em cuja boca Richard Bach semeia a frase autêntica e
incomparável: “- Só a lei que conduz à liberdade é verdadeira... Não há
outra...”
Mas, de repente, a voz do comandante interrompe pensamentos
e conversas, cria expectativas, é que vamos descer. Luzes e avisos em
alertas. Interrupção dos serviços de bordo. Banheiros proibidos. Sentados
todos, os cintos aprisionando corpos. Já tínhamos passado sobre Montevidéu,
estávamos perto da foz do rio da Prata, e Buenos Aires se oferecia, mais à
frente. Breve, deixaremos de estar “nas mãos de Deus”. Aguardemos, pois, sem
neuroses. Pelo menos até a próxima decolagem, enquanto as prometidas
atrações portenhas nos forem desvendadas.
(14 de maio/2011) CooJornal no 735
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miltonxili@hotmail.com
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