Foto MXL
A rua paralela que, pelo lado norte, acompanha o
leito do rio Itapemirim em direção ao leste, se chama simplesmente Moreira.
Dela, em determinado ponto e em suave ladeira, sobe a Don Fernando, inclina-se
à direita e termina no largo da igreja do Senhor dos Passos.
Senhor dos
Passos agora, porque, aos olhos e pés meninos de muitos anos atrás, era a
Matriz de São Pedro, padroeiro da cidade, onde se centralizavam as principais
festas religiosas do município.
Retorno a Cachoeiro de Itapemirim
sozinho, só o sabe quem me hospeda, é o terceiro dia das minhas andanças. Se
acaso alguém me reconhecer, tentarei desculpas. Verdade é que procuro sentir e
descobrir quais emoções existem ainda aconchegadas às minhas saudades ao
passar e revivenciar ruas, casas, praças, paisagens em que brinquei, comecei a
descobrir a vida, pessoas que absorveram meus olhares curiosos, primeiros
mestres de um “Graça Guardia”, grupo escolar primeiro e de tantos momentos
bons... um mundo mais verde, belo, e inconsequentemente feliz.
Morei no
163 da rua Don Fernando, ao lado da então Matriz. Comecei a frequentá-la aos
sábados, inicialmente. Meninos e meninas da vizinhança, subíamos para o andar
do coro, ficávamos no caminho lateral, e, agachados, entre os espaços do
parapeito de madeira, apreciávamos os casamentos ricos e pobres, todo mundo
elegante ao seu modo, se movimentando sob os rituais da cerimônia, ou parando
sob as exigências das obrigatórias fotos finais, quando nos divertíamos com o
mesmo esperado estouro e a fumaça espessa do “flash” de magnésio a invadir os
ares, assustando os rostos dos fotografados. Ali era nosso refúgio, porque,
vestidos com nossas roupas de folguedos, sempre sujas, seríamos, no térreo,
recebidos com olhares de censura e desprezo dos convidados.
O bom e
gordo Frei Eulálio me capturou peregrinando pela sacristia, me iniciou na sua
equipe de coroinhas, com suas batinas negras ou vermelhas, nem sempre
ajustáveis ao nosso reduzido tamanho. Fui também apóstolo em “lava-pés”,
ajudei nas ladainhas do mês de Maria, até que um dia, ouvindo mal uma
orientação em missa solene, deixei de conduzir o pesado missal para um dos
lados do altar... Envergonhei-me, censurei-me fortemente aos oito anos de
idade e, aos poucos, fui me ausentando de lá.
Aconteceu, então, a morte
prematura do meu pai, ausente da cidade, em Cabo Frio. Por causa disto e dos
costumes, minha mãe adotou o luto em suas vestes. A cor escura da sua roupa
fez brilhar associações em minha mente, a ideia surgiu, ali estava a “batina”.
Empilhando caixotes, maiores embaixo, menores em cima, forrando-os com panos
largos e compridos, colocando sobre o mais alto um crucifixo, eis o altar,
santinhos de papel espalhados pelos degraus laterais formados pelas saliências
dos caixotes. Sobre a superfície do caixote inferior, o cálice, ou seja, um
copo maior, de alumínio, camuflado sob um guardanapo de pano.
Convocava
a garotada, vestia a “batina” da minha mãe, celebrava a missa à moda, padre
sempre de frente para o altar, despejava “dominus vobiscu(s), ora pro nobis,
agnus dei(s)”e outros decorados latinos, dava comunhão com as sobras das
hóstias que o magro “seu” Virgílio, o sacristão, artesanalmente preparava...
Vinho, branco, era água...
Quando não tinha plateia, rezava sozinho,
sempre aos domingos...
Certo dia, parei no meio da igreja, fiquei
olhando as imagens. Na verdade, as media. Pousei meu interesse na de São
Tarcísio, pequena, só busto, no altar lateral, à direita, perto da Nossa
Senhora das Graças. Fui até a casa paroquial, pedi para falar com Frei Luiz
(Atienza), o pároco, que eu queria emprestada a “leve estátua” de São Tarcísio
para fazer uma procissão com as crianças da rua! Paciente e eternamente ele
ficou de pensar no assunto.
Depois, apareceu lá em casa a prima, bem
adolescente. Soube da minha dedicação religiosa, queria me ver rezando uma
missa. Foi especial, só para ela. Comentou aos ouvidos da minha mãe:
- É,
parece que vamos ter um padre na família, e um padre bem bonitão!
Mamãe
observou, não sei se contente ou não:
- O pai dele reclamava muito que,
quando ia passear com ele, bem pequeno, ainda, tinha mania de puxá-lo para
entrar pelas portas de igrejas. Logo com ele que não era muito chegado a
religiosidades!
Estava justamente pensando no medo que, crianças,
tínhamos do Senhor dos Passos, de tamanho humano, ajoelhado e ensanguentado
sob o peso da cruz, rosto escondido sob imensa cabeleira de fios naturais,
parecia de verdade, colocado naquele canto escuro da igreja, quando a voz do
senhor de meia-idade me vem esclarecer que é hora de fechar, agora só reabre
para a missa da noite, depois da Ave-Maria. Ergo-me lentamente do banco e, na
calçada, dominada a claridade agressiva, me encanto com o imaculado céu azul
daquele inverno.
Atrás, a grande porta do templo é trancada, sepultando
reencontradas andanças velhas desses meus pés hoje tão pecadores. Triste,
alegre, alegre, triste vou... sentindo sob meus pisares os mesmos e antigos
paralelepípedos da minha terra natal.
(Revista Rio Total, CooJornal nº 734, 07 de maio/2011)
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Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ
miltonxili@gmail.com
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