28/08/2010
Ano 13 - Número 699
ARQUIVO
MILTON XIMENES
|
Milton Ximenes Lima
REMINISCÊNCIAS:
A CASA QUE SE ESQUECEU DA MINHA IRMÃ
|
|
De repente, no passeio de saudades pelas ruas de
Cachoeiro de Itapemirim, a sensação de uma borracha espacial passada na memória
dos olhos pretéritos da minha irmã mais nova, Maria José. A dúvida cresce: -
Onde a casa onde nasci? – procura ela, na bela manhã daquele dia de meados de
junho de 2005, em que retornávamos à cidade, os três, eu e minhas duas irmãs
(Maria Eugênia é a outra) para participar de uma cerimônia na Câmara Municipal.
A máquina digital oscila pelo enquadramento criado por suas mãos, inseguras
quanto à direção certa do foco. “Ela ficava bem aqui, na rua Moreira, lado
impar, logo depois da Coronel Monteiro, na direção de quem caminha para o bairro
Coronel Borges. Parede cinzenta, cor de cimento. Uma porta no centro, duas
janelas laterais, um portãozinho do seu lado direito (de quem entra)”. Ela anda
pra lá e pra cá, procura ângulos de visão que lhe façam reconhecer e ressurgir o
lugar onde se situara a casa. “Não é essa que está aí.” – confessa-nos, enfim,
decepcionada.
Também confuso, me entristeço, porque fiapos de minhas primeiras memórias
começaram justamente aí, na segunda residência do casal, o então desenhista e
arquiteto da Prefeitura Geninho Lima e a professora estadual Lulu, um imóvel
alugado ao “seu” Chico Athayde, ex-prefeito, morador lá no fim do Coronel
Borges. Dentro do tanque, situado nos fundos do corredor de chão cimentado que
se iniciava no tal portãozinho, a visão primeira de uma pequena tartaruga se
movimentando entre folhas de alface. (Os animais são imagens de encantamento que
marcam a lembrança de qualquer criança). No parapeito da janela da sala, certo
dia, os agrados do Tenerá, figura típica do folclore cachoeirense dos nossos
tempos, me oferecendo uma mariola de goiabada, que aceitei e mastiguei
prontamente, o que me valeu uma incompreensível reprimenda e forte lavagem da
boca. Interessante é que a imagem de Tenerá não me assustou: seu chapelão, sua
cara enorme, pálida e enrugada, poros pretos da pele, os grandes anéis nas mãos,
seus cachorros, o barulho da sua voz propagandeando reclames comerciais no
megafone, eram atrações, novidades, para a criança simplesmente curiosa... Mais
tarde, minha mãe me contou que naquela casa levou, também, um dos maiores sustos
da vida ao notar meu desaparecimento dos degraus da porta, onde costumava ficar
sentado após o banho tomado. Procura daqui, procura de lá, estava eu na casa de
uma vizinha, quase defronte, do outro lado da rua, que me achara “tão
bonitinho”, e me levara para exibir aos familiares. Não era seu hábito fazer
isto, mas, naquele momento, nervosíssima, a mãe inaugurou-me as primeiríssimas
palmadas.
Mas, para minha irmã, Maria José, aquele lugar era muito mais valorizado
sentimentalmente. Nesta casa se iniciou uma ligação emocional, que ela só viria
a compreender duas décadas após. Somente quando adulta é que ela soube que o Dr.
João de Deus Madureira Filho fora um dos melhores amigos do nosso pai, e que ele
havia, junto com a Dindinha, nossa dedicada babá e segunda mãe, lhe salvo a
vida, pouco tempo depois de nascer. O parto fora guiado por uma parteira, e, ao
trocar as fraldas da bebê, Dindinha as encontrou empapadas de sangue, e
sentiu-lhe o corpo em temperatura baixa (hipotermia). Verificou que o coto
umbilical havia sido amarrado muito frouxamente e sua primeira providência foi
apertá-lo fortemente com o primeiro barbante que encontrou. Em seguida, tratou
de procurar um médico, nem mais nem menos que o Dr. João, um pediatra de “mão
cheia”, mas, infelizmente, ele atravessava triste período da sua vida,
inconformado com perda recente de uma filha criança, e não se sentia capaz de,
emocionalmente, atender aos seus pequeninos clientes. Depois de muita
insistência da Dindinha, que apelou para os laços de amizade que o ligavam ao
nosso pai, ele cedeu, e, além dos cuidados imediatos próprios, passou uma noite
e um dia aquecendo a bebê com cobertores “quentes” até percebê-la em melhor
estado. (Tempos heróicos, início dos anos 40, sem as oportunas UTIs infantis e
transfusões de sangue!).
E a simpatia inconscientemente gratuita que tinha por aquele então seu professor
de Geografia do Liceu a levaria a convidá-lo para seu padrinho nas formaturas do
ginásio e científico.
Então, no retorno ao Rio, comecei minha busca, na tentativa de ressuscitar o
exato local da querida casa. Um catálogo telefônico cachoeirense, que conseguira
em uma das visitas à terra, nada esclareceu porque não assinalava as esquinas
que cortavam as ruas e, se assim fosse, eu me guiaria pela bem próxima Coronel
Monteiro, aquela que sobe e se transforma, à direita, na Don Fernando, caminho
da Matriz de Nosso Senhor dos Passos, lado norte da cidade. Papéis vários
deixados por minha falecida mãe, entre eles certidões de nascimento, omitiam o
local do parto. Os recibos da locação, preenchidos, assinados e selados pelo
proprietário, Francisco Alves de Athayde, mencionavam simplesmente “cômodo
residencial na rua Moreira”, e que o imóvel fora ocupado por nossa família até
1944. Já ia desistindo, quando, mexendo nos papéis da servidora estadual Maria
Luiza Ximenes Lima, encontrei documento com as indicações dos seus
beneficiários, e, nele declarado, seu domicílio: rua Moreira nº 53! Volto às
páginas do catálogo telefônico (de 2002), e verifico que do nº 51 a numeração
salta para o nº 57.
Não tenho outro caminho, então. Por telefone, convoco o ouvido direito da minha
irmã mais nova, hoje médica, e lhe faço saber que uma cirurgia dos homens no
corpo do tempo extraiu, sem piedade, mais esta nostálgica paisagem da nossa
infante existência. A partir daí, em irresistível seqüela, nossos cérebros
absorveram, para sempre, mais uma cicatriz urbana para descodificarem antigas
memórias da tão estimada aldeia natal.
(28 de agos7o/2010)
CooJornal
no 699
Milton Ximenes é cronista, contista e poeta RJ
miltonxili@gmail.com
Direitos Reservados
|
|