26/06/2010
Ano 13 - Número 690
ARQUIVO
MILTON XIMENES
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Milton Ximenes Lima
MISSAS E MISSÕES
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Em homenagem ao Dr. José Francisco
Tudo começou em Cuba, onde sedimentou amizades com estrangeiros e outros
brasileiros, companheiros naquela viagem de intercâmbio estudantil de
solidariedade. Tempos depois, um deles, do interior de São Paulo, lhe propôs
participar de outro programa, desta vez beneficiando brasileiros, mais
precisamente populações ribeirinhas de certa região da Amazônia às margens do
rio Madeira. Engenheiro e católico, engajado às doutrinas sociais da Igreja,
tinha, naquela oportunidade, tempo disponível para aceitá-la, e lá, sob o
comando de um padre redentorista, participou de vários serviços.
Um deles foi adentrar na floresta, descobrir e arrebanhar casais solteiros e
convencê-los a oficializar a união através de um casamento religioso. Um
sucesso, todos queriam. Até que surgiu um caso especial, uma mulher de Manaus
que, cansada dos maus tratos impingidos pelo marido, abandonou-o, fugiu para
ali, onde há trinta anos convivia com um novo companheiro. O padre se recusava a
casá-los, invocando impedimentos canônicos.
Numa noite, em reunião de hábito, destinada a avaliar as ações diárias, o grupo,
maioria de estudantes universitários, trocou idéias sobre o posicionamento do
religioso. Todos componentes se mostraram favoráveis a uma solução satisfatória
para o caso. O padre, negando. Até que ele mesmo ponderou ao sacerdote:
-Mas o Senhor, pelo menos, não poderia abençoar o casal?
Ao invés de responder, simples e diretamente, o padre perdeu o controle,
surpreendeu-os com:
- Engenheiro, não posso... e vá pra p.....
Mal estar no ambiente. Palavras difíceis de se prever na boca de um considerado
representante de Deus! Impossível o diálogo, todos se retiraram para o
alojamento da desconfortável casa paroquial.
Dia seguinte, na missa, no momento das intenções iniciais, o celebrante tentou
se penitenciar:
-Gostaria de pedir aqui desculpas e perdão ao Engenheiro pelas palavras que lhe
dirigi ontem à noite...
Participando da assembléia, ele somente soube abanar a cabeça e dizer:
-Tudo bem, tudo bem...
Mas lá dentro, no fundo dos seus sentimentos, mastigados na noite mal dormida
diante da inesperada ofensa, mil vontades de faltar-lhe com o respeito,
devolver-lhe o apelido que ele escolhera para sua mamãezinha querida. Não era o
momento, não era realmente fácil esquecer, daria tempo ao tempo, administraria o
aborrecimento, suas formações familiar e religiosa assim o aconselhavam.
Difícil, aliás, entender também se a vivência isolada da selva brutalizara
certas atitudes do religioso, ou mesmo, se elas eram próprias marcas da
individualidade dele.
Uma das normas, por exemplo, de comportamento da comunidade era ninguém se
aventurar sozinho na floresta. No mínimo, dois na empreitada. Aquele jovem
caboclo, porém, mais ousado, resolveu desobedecer quando foi procurar e apanhar
madeira levando a moto-serra do acampamento. Descuidou-se, sobreveio o acidente,
a máquina lhe atingiu uma das pernas, o sangue começou a jorrar. Quando deram
por sua falta e o acharam, nada se pôde mais fazer, a não ser homenageá-lo com
velório e missa de corpo presente. Permitiu-se, então, que seus conhecidos se
manifestassem sobre o convívio com o falecido. Amigos e amigas se aproximavam do
caixão, faziam seus elogios, lembravam fatos agradáveis. E eram muitos os
admiradores e admiradoras. Inesperadamente o padre perdeu a paciência de esperar
o término daqueles inacabáveis elogios, interrompeu-os, jogando no ar suas
conclusões:
-Vamos continuar com a missa. Ele não foi nada disso que vocês estão falando aí,
não! Eu conheci muito bem a vida desse moço e sei o que andou aprontando!
Apesar dos pesares, reconhecia-se, era um padre empreendedor, teimoso nas suas
convicções, muito responsável na sua missão. Sabendo-o engenheiro, convidou-o
para mais uma empreitada. Feitos os indispensáveis cálculos, escolhido o
necessário local para um profundo buraco, selecionado o grosso tronco de
madeira, idealizada a alavanca humana, cordas de apoio, aglutinado incansável
esforço físico de todos, sob vozes de comando no ar, finalmente foi erguido o
imenso cruzeiro da aldeia às margens do rio, marco de referência, hoje, para os
navegantes do rio Madeira.
Este empreendimento, acredito, seja uma lembrança inesquecível no arquivo da
memória do meu amigo, o Engenheiro, não só como cristão, como também como
profissional, um belo exemplo de solidariedade e improvisação técnica. Para
avaliarmos o que foi, só ele mesmo contando.
Passou a ser um afago no seu ego, boa recordação no arquivo social e
profissional da sua vida, apesar do “sagrado” palavrão que entupiu seus ouvidos
e suas emoções. Se assim não o fosse, neste almoço de dia premiadamente
ensolarado, não estaria, às gargalhadas, nos recordando essas suas amazônicas
aventuras.
(26 de junho/2010)
CooJornal
no 690
Milton Ximenes é cronista, contista e poeta RJ
miltonxili@gmail.com
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