Lilian Maial
PAIXÃO
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Na varanda, debruçada sobre mim, uma
vontade natural de voar. A noite acolchoa as vísceras incômodas e o luar
se esconde para não testemunhar a alquimia. Transformo vinho em água.
Não faço outra coisa que não aguar desde menina.
Acende-se a luz
amarelada em frente ao sonho. Perturba-me o silêncio da janela fechada
lá longe. Prefiro o som das mangueiras esguichando, o óleo na superfície
lisa refletindo cores. O velho cheiro urbano de problemas.
Pessoas nos ônibus, sacolas de compras, carros que vão e vêm, todos
distantes, ainda bem. Eu estou distante e reluto em chegar à varanda.
Quero o manto nublado de encobrir esperas. Pesa-me a cruz. Tantas
cruzes, cicatrizes, contusões.
Preciso da chuva das
sextas-feiras santas para lavar o sangue que circula em minhas veias
desde sempre. Meu sangue contaminado de poesia.
Estúpido ofício.
Não aprendi a gritar em silêncio. Não me ensinaram a desconfiar de
versos simples. Não sei fazer mais nada, senão esperar.
Meu pai
tinha um pó de fechar as chagas. Devia ter-me pulverizado em carne viva,
me coberto inteira. Mesmo assim não curaria aquela que não sara, que não
seca, que escoa pelo canto do olho.
Não gosto da varanda à
noite. Não gosto de mim à noite. Não gosto de meia-noite. Não há um
pingo de chuva. Não há uma gota de mim.
Lilian Maial médica, escritora, poeta
RJ
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