Lilian Maial
A CRISE
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De uns
tempos para cá, tenho ouvido falar muito em crise. É crise de
adolescência, crise dos trinta, crise dos quarenta, dos cinquenta, crise
de identidade, crise existencial, crise por não ter nenhuma crise!
É quando se nasce que deve acontecer a maior de todas as crises.
Imagine só: a gente lá dentro, protegidinho, no quentinho, acolchoado,
recebendo tudo que é tipo de carinho, ouvindo aquela vozinha doce... de
repente: upa! Uma tal de luz invade os olhinhos, vêm os barulhos todos de
uma vez e, para nos receber ao mundo, um sonoro tapa no bumbum. Isso é
que é crise! Não há neném que não pense: “Quero voltar!”
Depois
vem a crise das descobertas do mundo, quando se aprende a andar (não sem
antes levar alguns belos tombos), quando se aprende a falar, e a
palavrinha mais ouvida passa a ser NÃO. Não pode isso, não pode aquilo.
Não há criancinha que não entre em crise, ainda mais se tiver um
irmãozinho ou irmãzinha com quem dividir os carinhos da mamãe e do
papai.
E a crise do primeiro dia na creche ou escola? Ser
abandonado completamente só e indefeso, ver a mãe virar as costas e
simplesmente ir... e o pobre nenê ficar lá, à mercê daquelas tias
horrorosas, daquelas crianças perversas, daquela cozinheira que só sabe
fazer legumes, verduras, saladas sem graça... nem uma batatinha frita...
buá!!!
Aí começam as crises inerentes à infância: escola, provas,
amiguinhos (nem sempre tão amiguinhos assim), professores cruéis e
predadores, competições, curso de inglês, natação, balé, judô, e nem um
tempinho pra brincar de ser criança...
Pensam que esqueci da
puberdade? É quando nem bem se é adulto, e já não se é mais criança.
Aparecem espinhas, mudanças na voz, mudanças no corpo, falta de vontade
pra qualquer coisa, sonolência, indisciplina, descobre-se que pai e mãe
são – pasmem – humanos! Aí vêm os pêlos indesejáveis, a menstruação, a
ereção, a ejaculação, a masturbação, um não se saber o que fazer com
essa tempestade de hormônios, e ainda ter de se afirmar, buscar uma
identidade. Realmente, uma das piores crises. Isso sem falar em ter de
aprender como lidar com drogas, preferências sexuais e violência.
Alguns passam pela adolescência sem, de fato, a viverem, sem provar
das delícias de se cometer loucuras em nome de uma rebeldia de quem se
sentiu traído pela vida, pelos pais, por Deus. E isso pode se dar por
uma série de razões, inclusive pela assunção – voluntária ou não - de
compromissos precoces. Esses, possivelmente, terão necessidade de
vivenciar sua adolescência bem mais tarde...
Muito bem, de
repente se fica adulto, mas ninguém avisou nada. Foi assim, de repente:
ontem se era um moleque ou uma moleca, no dia seguinte se é adulto,
responsável, com uma espécie de peso sobre os ombros. E é quando surge o
tal do medo. Mas não o medo de escuro, o medo de bicho papão. Antes
fosse! É o medo do fracasso, o medo da escolha errada, o medo dos medos
do mundo, das doenças, da competição, da desumanidade. É quando se toma
conhecimento mais aprofundado sobre a morte e seu real significado, sem
o romantismo das historinhas infantis.
Nisso, os novos adultos
entram para a faculdade, o mercado de trabalho, casam, têm filhos, e a
vida vai passando, dia após dia, numa roda-viva que não dá tempo pra se
ter ou perceber crise alguma. São jovens, saudáveis, lutam e se ocupam
de tantas responsabilidades e infinitos prazeres também.
Só que,
num belo dia, o trabalho se estabiliza, os filhos crescem, saem de casa
(ou tornam-se absolutamente independentes) e aquelas férias que tanto
adiamos parecem, subitamente, enfadonhas. O que fazer com os dias
livres? Aonde ir? Como se divertir? O que nos diverte mesmo? Quem somos
nós de verdade? O que há por trás desse rosto, desse corpo (que já não é
o mesmo), dessa alma (que nunca foi tateada antes)? Surge uma tristeza,
que não se sabe de onde vem, como que uma incompletude, uma
irrequietude. De pronto, as coisas tão certas, tão arraigadas, tão
verdadeiras, perdem o sentido, a razão, e as verdades passam a não
parecer tão firmes assim. Vem a necessidade de viver tudo de uma vez, de
viver cada dia como se fosse o último, ou o único que se teria pra
viver. Há pressa em ser feliz, como se até então nunca se tivesse
realmente sido.
Essa é a famosa crise dos quarenta, quando o medo
do envelhecimento, da doença, da limitação, da morte, começa a chegar
cada vez mais perto, a povoar um percentual cada vez maior dos nossos
pensamentos. Essa crise é das mais cruéis e difíceis, justamente porque
se dá com o crescimento dos filhos e sua separação dos pais (seja física
ou apenas emocional), coincide com a pré-menopausa nas mulheres (que vem
com o fantasma da esterilidade, do tornar-se seca como mulher, muitas
vezes fazendo com que elas se sintam atraídas por rapazes, como forma de
afirmação da juventude e do poder de atração) e a insegurança da
manutenção da virilidade nos homens (que faz com que muitos procurem a
afirmação na conquista de mulheres mais jovens). É a fase mais arriscada
para os casamentos (que têm nessa ocasião o maior índice de separações).
É extremamente complicado, para algumas pessoas, atravessar essa
crise. Nas mulheres, a noção da proximidade da esterilidade, de não
poder mais procriar, está intimamente ligada à condição de fêmea, à
sensualidade, enfim, mescla confusa da função de perpetuação da espécie
com o usufruto do prazer. Assim, ela entra em desespero pela
possibilidade, cada vez mais próxima, de deixar de ser a mulher
atraente, quente, úmida, bonita, esbelta e sedutora que sempre se soube,
mesmo que isso só aconteça na sua mente, no seu íntimo. Por conta disso
é que ela passa a se preocupar com a aparência (mais que antes), a fazer
dietas, entra em academias, muda o vestuário, procura fazer tratamentos
de rejuvenescimento, na tentativa de adiar, de driblar o implacável
tempo.
Nos homens, a coisa se passa de maneira semelhante, só que
neles, como não há a cessação de uma função biológica (não têm uma
menstruação para acabar), é mais tênue e lenta. O homem de quarenta (ou
perto disso) começa a desenvolver os traços familiares característicos
da genética: ficam calvos, os cabelos embranquecem, adquirem uma
barriguinha, aumentam de peso, reduzem a agilidade e, por conta do
somatório disso tudo, se enxergam menos atraentes e questionam sua
virilidade (que também não pode ser igual ao que era aos dezoito anos).
Alguns tendem a acompanhar bem de perto os filhos, tornando-se amigos de
seus amigos, buscando programas com pessoas bem mais jovens, chegando a
adquirir hábitos e linguajar próprios dessa faixa etária; outros testam
o seu “poder de fogo” paquerando meninas que poderiam ser suas filhas.
Muitos se separam das esposas de quarenta e casam com essas garotas, ns
busca da eterna juventude.
Como nos homens esse processo é bem
mais lento, pela não existência de um ciclo que cessa, essa crise dos
quarenta pode durar até depois dos sessenta, inclusive porque, neles, o
medo da morte e da substituição é muito mais presente que nas mulheres
(risco de doença cardíaca, medo de perda de emprego, medo da perda da
condição de provedor, que eles associam à masculinidade até os dias de
hoje).
Mas há homens que entendem seu momento e acompanham toda
essa mudança com vitalidade, cuidados com a saúde, disposição física e
mental, e tornam-se, esses sim, os verdadeiros meninos, sem deixar de
olhar no espelho.
Depois de um tempo de furor e embriaguez de
juventude, há outras mudanças que a vida prepara: tanto homens, quanto
mulheres começam a perceber a solidão. Os filhos saem de casa, um a um,
e sobrevém a “síndrome do ninho vazio”, que é um conjunto de sintomas,
que habitualmente acomete mais a mulher, mas que afeta toda a casa, com
uma instabilidade emocional coletiva, tendência ao egocentrismo, ou
seja, cada um, por pena de si mesmo, procura se dar mais atenção, em
detrimento do que sempre dispensou aos demais. Vira um círculo vicioso,
pois os demais, sentindo o abandono daquele, também naturalmente o
isolam.
Simultaneamente, vem o fantasma da aposentadoria, que
representa, sem sombra de dúvida, o degrau de entrada para a assim
chamada “terceira idade”. Se a pessoa não tiver uma cabeça aberta e não
possuir uma variedade de interesses e dependências outras, entra em
profunda depressão, se deixa abater e adoecer, e torna-se amarga,
soturna, ranzinza, sem atrativos, limitada física, intelectual e
emocionalmente, afastando lentamente todos os outros de seu convívio,
agravando sua sensação de isolamento e menos valia.
Essa é a
crise da terceira idade, que a nossa civilização, notadamente a
ocidental, faz questão de alijar. Daí o horror dos indivíduos maduros de
se aproximarem dessa faixa de idade, que representa a velhice, só que de
uma maneira doentia, quase que representando uma sala de espera da
morte, o que não é absolutamente verdade, haja vista os grandes nomes
das artes, das ciências, da política, do jornalismo, enfim, de todas as
profissões que contribuem para a evolução do ser humano, terem projeção
maior e reconhecimento justamente quando são mais velhos e acumularam
conhecimento.
Todas essas campanhas de valorização do idoso são
importantes para a conscientização da população, mas de nada adiantam se
o próprio idoso não conseguir ultrapassar mais essa crise, das tantas
que já vivenciou.
O mais interessante, quando se pensa nas
crises, é que sempre se está numa delas. Talvez se passe um pequeno
período, dos 25 aos 35 anos, onde não se está preocupado com isso, ou
melhor, não se tem muito tempo disponível para pensar sobre isso, mas é
só aí. Na verdade, essa é a época da construção da vida, é quando se cai
no mercado de trabalho, quando se escolhe companheiro, filhos, projetos
e se trabalha intensamente para realizá-los, não sobrando espaço para
preocupações individuais, já que se une esforços em prol da família.
Toda a nossa vida é entremeada de crises, e cada qual é tão mais
importante, quanto menos estivermos preparados para ela. No fundo,
enquanto se está nela, ela é a mais grave, a mais difícil, a mais séria
de todas.
Para um bebê, não conseguir apanhar os objetos que
despertam sua atenção gera uma série de reações físicas, que traduzem a
angústia e até mesmo desespero que tais limitações lhe causam.
Para um adolescente, as transformações pelas quais passa, o ter de
escolher o futuro através da profissão, quando sequer conhece o que
existe por aí, causa muita ansiedade, aliada às tempestades hormonais,
que provocam mudanças abruptas em sua aparência externa e interna,
muitas das vezes solitárias, sem que os adultos ao redor se dêem conta.
Enfim, cada fase é uma etapa na caminhada, com encruzilhadas
peculiares a cada estrada, onde cada pé sente conforto em determinada
maneira de pisar. E não adianta comprar os sapatos mais caros, aparar as
unhas ao máximo, tentar se esquivar de buracos, cascalhos e lama, pois
tudo só depende da intensidade do salto que cada um pode dar, e de como
se preparou para os pulos.
(RT, 21 de julho/2007)
CooJornal no 538
Lilian Maial médica, escritora, poeta
RJ
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