Lilian Maial
UMA FAMÍLIA E DUAS HISTÓRIAS DE AMOR
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Por todo o mundo ainda persistem
diferenças, sejam raciais, sociais, de credo, de idade, de sexo. O ser
humano não é igual e gosta de se superar usando, para isso, as armas que
tem, tanto mais sutis, quanto maior seu conhecimento.
Não
querendo simplificar as coisas, diria que a condição de inferioridade
imposta à mulher em todo o planeta vem se dissipando a passos de
tartaruga, enquanto suas responsabilidades e atribuições vêm crescendo a
passos de lebre.
Impossível esquecer que ainda hoje imperam, em
inúmeros países, a submissão total da mulher, a castração ao nascer, os
piores castigos para adultério e a clausura de certas “opções”
religiosas.
Tudo isso é um prólogo para duas historinhas que
pretendo contar, vivenciadas no seio da minha família, diametralmente
opostas em termos de visão do companheirismo e da condição feminina,
porém oriundas da mesma raça, do mesmo povo imigrante.
Meu avô
paterno, nascido em Damasco, Síria, ainda muito moço veio ter no
Maranhão, para cumprir os desígnios da família, que havia celebrado um
pacto, junto a outra família amiga, quando do nascimento de seus
primogênitos.
Vovô nunca havia visto vovó, então com seus 15
anos, filha de pai sírio e mãe francesa, e se quedou de amores à
primeira vista, diante da indiscutível beleza, misto de raças muito
belas, daquela menina pequena, branquinha, cabelos anelados e lábios
finos, parecendo um bibelô, muito diferente das moças da terra natal de
vovô, todas morenas, cabelos negros e lisos, porte mais graúdo.
Acontece que vovó era louca e adolescentemente apaixonada por um
vizinho, e tomou ojeriza ao vovô, apesar do tipo muito bonito, cor de
mouro, olhos profundos e penetrantes, sorriso largo e feliz, mas que não
era o seu grande amor.
Nos dias atuais, entre nós, brasileiros,
isso não seria problema, e vovô teria de se conformar em buscar outra
boneca de biscuit. No entanto, nos idos de 1930, no Maranhão, filha de
sírio, vovó teria de se conformar com o casamento, ou seria considerada
morta para o pai.
Muito arisca e cheia de sonhos de amor, que se
lhe foram implantados desde criança, vovó menina não se conformava em
perder seu grande amor, porém não podia desobedecer ao pai e permanecer
naquela casa. Então, secretamente, combinou com o rapaz amado de fugirem
e se casarem escondido, num típico sonho shakespeareano.
No dia e
hora combinados, vovó contou que reuniu poucas peças numa trouxinha e
fugiu à noite, rumo ao local estabelecido para encontrar seu futuro.
Disse-me que pulou janela e desceu por vegetação, numa ansiedade jamais
sentida.
Chegando lá, seu amado ainda não havia dado sinal, e ela
sentou pacientemente, contando estrelas e sonhando acordada.
Horas se passaram e a espera tornou-se cruel. Os pensamentos começaram a
confundir-lhe, com o medo do rapaz ter sido descoberto, punido ou se
acidentado. Até que percebeu que o dia já raiaria, e voltou para casa,
pelo mesmo caminho que viera.
Para quem já entendeu, o rapaz
nunca mais procurou vovó, que se casou com vovô e teve três filhos,
sendo meu pai o do meio.
Vovô se estabeleceu e se tornou um
comerciante de renome em Teresina, os negócios iam muito bem, até que a
mãe de vovó adoeceu, e ela, grávida de meu pai, voltou para São Luiz,
para cuidar da mãe que contraíra tifo. Em pouco tempo, vovó adoeceu, e
meu avô, louco de amor e medo de perder sua amada, deixou tudo e foi ao
encontro dela.
Conseguem todos se recuperar, mas, quando voltam,
o sócio de vovô havia limpado todo o estoque, deixando apenas as
promissórias das dívidas. Perderam tudo.
Sem dinheiro e com muito
orgulho, vovô e família viajaram para o Rio de Janeiro, com meu pai
ainda com seis meses de nascido, e tentaram recomeçar junto a um tio de
vovó, que trabalhava no comércio. Nunca mais se recuperam, embora vovô
tenha conseguido criar e educar bem os três filhos. Vovó me confessou
nuca tê-lo amado e nunca ter esquecido aquele rapaz.
Quase trinta
anos depois, meu pai se apaixonou pela minha mãe, filha de pai cigano
espanhol e de mãe filha de portugueses, uma boneca pequena, branquinha,
lábios vermelhos, cabelos curtos e anelados, corpo esculpido por deuses,
e passa a vida a adorá-la, a protegê-la, a amá-la, a tentar adivinhar
seus sonhos mais secretos, e satisfazê-los.
Ela, por sua vez,
ainda é apaixonada somente por ele, mesmo hoje ele já completando 24
anos de falecimento.
Ela foi companheira, guerreira, amiga,
amante, mãe, irmã, enfermeira, gueixa, tudo para ele! Foram realmente
muito felizes, e eu cresci vendo, todo Domingo, sem faltar nem um só,
meu pai acordar bem cedinho, como de costume, em silêncio, para que ela
não despertasse no seu único dia que podia acordar mais tarde (ela
trabalhava inclusive aos sábados). Vestia-se, ia à padaria, comprava pão
fresquinho, leite, fazia café, e preparava uma linda bandeja de café da
manhã, sempre com uma rosa num vasinho solitário, com um bilhetinho de
amor por debaixo. Ligava a mesma música por anos a fio, e abria as
cortinas, quando o sol já ia alto, para despertar sua amada com música,
flor e amor. A música era “Canção da Manhã Feliz”, interpretada por
Miltinho.
Infelizmente, papai faleceu muito moço, vítima de
infarto fulminante, e deixou minha mãe em profunda tristeza, ainda no
auge da beleza e juventude. Ela nunca mais quis sequer olhar para nenhum
homem, apesar de todo o encorajamento meu e de minha irmã, para que ela
voltasse a ser feliz. Ela dizia (e ainda diz), que não há um dia que não
acorde ouvindo e vendo, em suas lembranças, a Canção da Manhã Feliz. E
que é meu pai quem vai levar a bandeja com a rosa para ela.
(10 de fevereiro/2007) CooJornal nº 515
Lilian Maial médica, escritora, poeta
RJ
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